Pedaço esquecido



   Ele chega e vê o pano vermelho no canto escuro entre o sofá e aquele abajur de alças com pantalhas amarelecidas que ganhou na primavera passada quando seus parentes, cansados dele, resolveram dar fim à tralha, e assim o acudiram terminantemente para suas leituras ocasionais.

O fato de sentar ali para ler - mesmo que mal pudesse manejar o livro -, fazia do recanto algo persecutório, um lugar fundado no desejo, por isso reconhecido antes, percebido antecipadamente.

Ele entra com a certeza do lugar, por isso vê o pano entre o sofá e a luz desejada. Claro, ela sabia disso. Tanto que sofria de ciúmes daqueles livros à volta com o abajur e procurava impedi-lo de aproximar-se revolvendo páginas marcadas, redistribuindo a ordem ou o convidando para outra coisa como tomar um suco.

Com o copo amarelo de suco às mãos dizia:

- Querido, vai ler? 

A pergunta tão doce é uma exigência, força de controle para antecipar o desejo tentando vivificar outro interesse, uma vontade escondida.

Se ele respondesse com outra pergunta, as coisas ficariam falhas - melhor entendidas -, ele iria ao problema crucial.            

- Por quê?            

- Não, não é nada, estava pensando.

 Nesse momento com certeza tomaria o suco entre as mãos sem pensar realmente se devia ou não fazê-lo.

- O quê?

- Não, nada! Já falei; nada não, já passou.            

- O quê?            

- Estava pensando, mas já vi que me olha desse jeito.           

- Que jeito?

 Ele pode até querer dar uma olhada em direção ao livro desejado, mas sua atenção está intermitente. Está no abajur, nos livros desmarcados e fora de ordem, no copo de suco quase vazio que jaze à sua mão proibindo-o de gesticular, no que a esposa diz displicente.          

- Está brabo.           

- Eu?            

- Quer ler, leia, não vou importar-me, nem nada sentir.        

 O "não é isso", "nada não", "isto é", "aquilo deixa", "outra hora", "não vamos brigar", “veja bem”, "criar caso" se amontoava na memória a cada encontro. De repente "não importa" o levava ao mercado, a preparar o alimento ou  encontro "casual" com Luiz e Janaina justamente naquela tarde de luzes e hinos: naquele sofá!          

Ela recebeu Luiz à tarde com certeza dançaram a luz do abajur e cortinas fechadas.            

- Cortinas fechadas?            

Usava lenço vermelho para mostrar elegância.            

- Elegância fajuta!

Canções antigas, valsas, boleros, estranhos gestos musicais enquanto estava no trabalho, longe de tudo.

 - Eu no trabalho e ela na dança.

Não existe professor de dança, mesmo vizinho disponível a dançar.

- E por quê?

Para sair da depressão e dar alguns passos na casa e conhecer o corpo, a alma e vestir aquele lugar de repetidos trajetos.

- Vai, volta; ir e vir.

E o lenço cai.        

- Cai o lenço ou é tirado?

Não havia susto, preocupação alguma, Marilene estava vívida e sorridente quanto nunca esteve.            

- Virão hoje!

Mas quando seria a dança? Nos finais de semana. Nas segundas tristes.           

 - Talvez.

Não poderia pensar mais que isso.

- Marilene!

- Estou aqui esperando uma resposta. Onde anda com a cabeça?            

- Marilene!            

- Oi, vamos ou não? Daqui a pouco o Luiz e Janaina vêm e eu quero estar arrumada para recebê-los, você vai ao mercado e compra dessa lista ( nem mais nem menos), e quando voltar estarei pronta e depois do jantar mostrarei - eu e Luiz os nossos passos.          

- Meu Deus!

- Que foi?            

- Nada.

Aquele lenço não era um lenço, algo o devolveu à noite passada quando Marilene estava na casa da mãe.            

Aquilo tudo, como aconteceu, aquilo que estava imaginando ali e com rendas.          

- Rendas?

 Ele calado, ele quieto e soturno como pedra de rio.

- Roupa de Janaina.


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Bessie (in memoriam)





            

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