Consenso

Consenso

Pedro Moreira Nt


   E por mentira, a nova linguística que tenta pôr as peças para formar a crença, como advogada, juíza da explicação, da justificativa se enforca para perder de vez a ciência, posso ver verdades, elas que me escapam das mãos quando as limpo, e o anel de doutor rola para o pinico de onde veio. A aliança está salva, e a vergonha vomitada. Ponho a capa de gente e saio na umidade suja do comum.

É uma questão de entranhas, de estômago abarrotado, de halitose. Gordura no corpo que havemos de nos limpar. Aquele catarro em borbulhas, aquele amontoado transparente que mancha os olhos. O que nos fustiga, que bate em nós e nos faz correr, sumir destemperadamente  de nós mesmos.
Como é gosmento e salgado o muco que sustenta essa baixa literatura existencial.

O meu cachorro fugiu para latir contra roupas de marca. O cheiro de cloro impregna os usuais panos da cozinha. O varal deita-se no gramado. A janela da lavanderia está aberta para receber as traças. Canil fechado, dentro um vulto. O presidente de algum tribunal internacional dorme. Há um lenço empapado na janela depois da despedida. Vizinhos fazem abaixo assinado contra a escola pública. No último volume está o rádio que canta a mesma canção de ontem. Um prego soa torto no ar como se fosse um esforço. Os certos levam consigo, na boca, a etiqueta das palavras prontas. O correio não veio, estava dormindo. A notícia que partirei foi dita duas vezes seguidas por um médico da direita que vende obituários. A máquina de lavar acompanha o último rock. A vida sem erros mora estonteada no caderno de ondas do curso de caligrafia.  

Na verdade, penso nisso, depois de Bachelard e todos aqueles. Penso que o conceito não suporta dúvidas, que desiste, que morre estrangulado com o vibrante e incessante transformar. Toque no conceito e ele foge como um colonizador desamparado, levando consigo as malas de suas verdades preconcebidas na ignorância. Somente com a morte dos grandes, daqueles que foram espezinhados com a sola suja de crenças numéricas é que se pode aplaudir cinicamente Mozart, Patativa do Assaré, Carolina Maria de Jesus, Beethoven, Sousândrade (ainda não conhecido), Zé da Luz, Qorpo Santo e até mesmo famosos desconhecidos, porque em artes visuais descobrimos antecipadamente o descoberto. 
O coletivo de meias verdades está no camiseiro de par em par. A duplicidade das asas não faz o vôo, mas promete. Acordar cedo é o mesmo que apagar a luz quando chega o dia. O sinal fechado é vermelho e o amarelo está em cima do muro, e o verde a dúvida de que não serei atropelado. 

A professora disse-lhe: esse texto não é seu; próximo.
A coletividade põe todo mundo a favor da polícia como se fosse elemento. O coletivo de nós no capitalismo está no singular ausente, o indivíduo.

O consenso é uma resposta única que diz o coletivo que aceita ser o que não é.

Uma vida sem autor é curricular, disciplinada na forja do coletivo estagnado. É uma assistência social à indústria da barbárie, à fábrica escravagista que usa e impõe a função derretida no não. O mercado dos cacarecos tem a mão ossuda das crianças maltratadas, algumas vezes pode abrir uma blusa e ver que na casinha do botão, na presilha do tênis, na coisa feita, encontra lá um pedaço de unha infantil. E se diz sorte. 
Para o raso pensamento a totalidade impregna a superfície.
Maior que o tombo incendiário de livros por governos democráticos e também, vê se pode, os ditatoriais,  o fim da biblioteca universal se faz fascículo exangue, coisa de vergonhosa apostila que mata com um singelo traçado de linhas tortas a maior retidão dos que estão na esquina. 

O crime que a palavra consome quando salta das fabricas os didáticos, os pueris, os condensados, os alterados, os manuais, as prósperas doutrinas em relatórios, e os raspados na língua morta que insiste ser o que é: escravocrata, dúbia, inconclusa, colonial metida a ser cheia de si.
Nada a temer. E temer é nada. Mas o temerário é sempre pródigo assassino. De justiça ao que se fala, nada se criminaliza, afinal, recebe o certificado de inocente quando aponta o seu crime. Por isso aziago frente à decadência da legitimidade no falanstério cercado por suas evidentes carpinas. A voz do atuante tem laca verrinada.
O desejo de morar leva a mudança. Toda vez que se entra em lugar para ficar, surge inopinadamente quem há de lhe dar carona. Aos que permanecem; a passagem para o próximo vôo. E aos que partem a chegada dos que hão de partir. Seguir sempre é parecido com a permanência das revoltas que ressurgem.
Muitas que se murchem por serem voltas, danças pagas. Cemitério de andares e gritos de terror que o vazio nos quer impregnar. 
Não mais digo coisa que não seja completamente ausência alguma. Nenhuma ausência, o objeto e palavra atacam o espelho. O bizarro é explosivo por que sem as letras se impõe e é letal. 
A inocência desperta ignorante.
A fome do que podia dizer, algo que pudesse ser maior que a mais requintada fala explícita, dita enlouquecida e não há.
Economia que vive da fome agradece aos bêbados para manterem o mercado do álcool, não dele, mas do mal, não somente um mal sem bem, mas de cuidados, de medicina, de impostos, de salvação de regeneração, de ganhos na bolsa. 
Se houvesse alguma frase que já não fosse dita, que já não estivesse encarquilhada  de velha na garganta, uma que arrebentasse a falta, e não há.
O consenso é como uma união de caras-de-paisagem, aquela forma egípcia nas paredes, aquele desenho encrostado  de intenções de contabilidade, aqueles frios números que mergulham no cofre, que saem da boca a quererem latir como animais e calam-se a sete chaves, como uma armadilha que pega, que compra, que paga a propina, que aceita a corrupção, as mesuras medidas, para então refletir. Reflexão de raios sobre o espelho em milhares de fractais  de luz que não alcança um cuspe na cara.
Consensual como é a prisão do significado, como que a personalidade não alcança sentido. E então desvia-se ao aniquilamento do sujeito feito interruptor de luz.
Acende apaga.
Entendeu Inês?
Estou falando com você Inês.
Estou a dizer que não tenho como usar a palavra que deseja, aquele eu-te-amo, aquela bossa feita de romanticismo, de caboclo, de jacu com doutorado, de um acadêmico em busca de subir nas costas de alguém, que o espezinha. 
Posso terminar?
Não sei o que é isso. Há quem diga que tenho crédito no cartão de crédito. 
É como algo que sinto, que cai no asfalto aquela motocicleta magnífica jorrando sangue naquele ordinário que ousou montá-la. Entende?
Energia sem massa. Posso dizer que te quero.

Consenso para refletir a mudança social ou armadilha que é a personalidade do sujeito agora, hoje? É mais importante? Quem faz isso? A questão? O sistema?

Qual?
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