Claudinei e a metidez




Claudinei e a metidez
Pedro Moreira Nt


Claudinei podia estar brincando de explodir o mundo. Até podia pensar coisas que são coisas impensáveis, como por exemplo, acreditar na luxúria ou ser hipérbolo, o tipo de sujeito que dorme na igreja. Ele só queria entrar naquela caixa, pentear o cabelo e subir de uma vez por todas.
Uma casa arejada na pilha de gato, uns sobre outros escondidos em cartórios, em um faz que vai de tribunais no labirinto de vantagens recompensadas por coisas e mais coisas. Ele, um milionário de camiseta hering só se declarava no sapato feito à mão e meias macias. Aliás, as meais de Claudinei eram macias.
Plano de detalhe de meias stretches, outras para jogging, para um passeio, para o trabalho, e aquela meia feminina com a qual se apaixonou.

Era pequeno, meio alto na pose, e baixo no riso irrisório. Cínico e ridículo com palavras empoadas que o hábito de nada-a-fazer o levava a girar páginas eletrônicas de sua biblioteca portátil. Sentar para ler e anotar em fichas de leitura minúsculas sua obsessão.
Claudinei se prepara para dizer algo, todos aguardam:
- Absolutamente.
Alívio geral.
Alguns o apelidam de "C", acham-no o cara.
Enquanto os mais famosos ladrões eleitos pela plebe fazia jardinetes para ganhar mais uma propriedade, Clau, como o chamavam mantinha-se na única intenção: vencer causas e causos.
Em meio à situação, aparece um jardim pequeno com flores raras, algum tipo político de fraque e cartola com uma pá prateada sorri.
Uma voz distante: Isso custou um milhão de dólares. Apenas.
"C" assina algo em uma prancheta enquanto vê aquele grupo em meio ao jardinete que é escondido com a passagem de carros, ônibus.
"C" olha para a moça à sua frente, ela, atenta para qualquer um de seus imprevisíveis movimentos. 
"C" olha para as meias dela, e volta-se sobre si mesmo e continua a caminhar.
A única vez que derrapou foi quando viu aquela micro-fibra carmim saltar aos olhos quando conheceu Eveline.
Ele imagina. Uma imagem recortada mostra uma mulher a se vestir. A única parte clara e brilhante é a meia vermelha.
Vários tipos de mais surgem em cascata.
Meia de cano baixo, 5/8, 3/4, curta, meio cano, meia esportiva, usual, clássica, peluda, de dançarina, sapatilha, meia de fantasia, de alta compressão, elástica, langerie, sarja, algodão rebatido, em fibra, de alça, com pregas, dobradas, com desenhos, dupla, de tênis, meião, até de papel, de poliamida, malha, e todas com o tom bórico, aquele de fim de tarde, de sol que acaba o dia escarlate.
Estava na cara que havia algo com esse desejo que o derribava.
Alguém diz: Pequeno, Pequeno.
O Pequeno, como também o chamavam estancou os olhos por baixo.
Dentro do tribunal, aquela tensão absurda em meio a uma quantidade também absurda de pastas, livros, documentos abertos.
Isso de ficar duro, pasmo por causa das meias da juíza quase o fêz perder a causa.
Claudinei olhava para as meias dela.
O assistente lhe chamou a atenção sobre uma testemunha. Claudinei perdeu a direção do olhar e fixou sobre verdades prontas, aquelas, aquelas empacotadas, feitas em envelope.
Venceu a causa porque deixou de enfiar a cara na meia da juíza.

- Pequeno, como foi?
Claudinei parecia desamparado:
- Fiz a defesa praticamente em pé. E quando era obrigado sentar ficava em 3/4 com liga.
O amigo olhou ao redor procurando entende o que significava:
- Que isso quer dizer?
Rapidamente Claudinei desata:
- Grudado no almanaque.
- Pequeno, que idéia, ficou remexendo no código. Boa idéia mesmo.
- Distribui.
O chefe da bancada de um dos escritórios pensou em silêncio, andou de um lado e outro.
Claudinei fixo à um anúncio de meias que podia adivinhar na janela do edifício em frente.
- Aquilo veste sozinho.
- Acho que tem razão Claudinei.
- É muita coisa, a gente tem que dobrar na liga, entende?
- Claro, claro, entendi sim.
- E mais a mais, sinceramente, uma soquete daquela derruba qualquer um.
- Então está certo, escolha a equipe e você dirige à distância.
- Se fosse de seda não corria fio daquele jeito.
- Muito bem. Combinado, as percentagens continuam as mesmas.
- Você acha que um pano bem colocado é o suficiente, a coisa toda tem de ter classe.
- Farei o seguinte, veste o que melhor lhe couber, eu acrescento quinze a mais se derrubar fora do prazo.
Daí nunca mais entrou num tribunal. O negócio dele era às escondidas. Sócio. Participava de uma infinidade de organizações civis. Era uma espécie de consultor, um prático que levava ao bom porto um navio de processos em tudo que era canto.
Naquela manhã, acompanhado por um grupo calafetado, entrou no Simes agarrado no computador de bolso, desses desdobráveis, daqueles que vem teclado, mouse, pads, com a única diferença que chamava de tablet, um que mandou fazer à sua media.
- Cabe como uma meia.
- Ovos mexidos?
Olhou para o grupo que se organizava para sentar.
- Sim.
- Meia dúzia?
- Meia.
Faz tempo, ninguém sabe o quê. Mas passou longos anos anotando no tablet todo o tipo de meia existente para calcanhares afoitos, para pés desejados, para corpos magníficos. Dali em diante, depois de pregar a cara na cara de bordados.
- Uma coisa que odeio é uma chaussete com marca, aquela coisa escrita, aquele emblema ridículo que tira toda a origem da beleza, e é um absurdo.
- O senhor tem razão, vamos aniquilar com o caso colocando as nossas meias à mostra, estou certa?
- Vamos pegar o caso no sapato polido.
- Professor - às vezes um e outro estagiário o chamava assim -, o que o senhor quer dizer é que devemos ir pé-ante-pé?
- Não, estou dizendo que temos que enfrentar o problema e mostrar quem somos, que temos verdade no que realizamos.
- Como então?
- Vamos de meias.
- Desviando?
- Pé de pano.
Todo mundo dizia que ele era chato, que media dos calcanhares até atrás da orelha e fazia um desdém do tipo: Esse não tem Jesus. Esse não descansa os pés. Esse não é da turma, não é do escritório.
Claudinei tinha um hábito de esteira, de caminhar, de seguir de bicicleta até a prefeitura, passar perto dos tribunais, cumprimentar os guardiões das varas mais importantes, descer perto da penitenciária, e muitas vezes perto das delegacias, dos distritos mais distantes. Fazia isso lá quando, em um dia que deveria resolver questões inquestionáveis.
Mas quando estava de bem com a vida, quando nada mais o impedia de pensar realmente na causa do bem, ele passava horas entorno das vitrinas.
Era o momento de suas risadas, de seu divertimento, algo que preenchia os pés para uma caminhada, para a pedalada.
O fato de sair a esconder o riso, e à distância, num abanar de cabeça quando começava a pedalar, virava-se e fazia aquele esgar. Boca aberta. A vitrina de meias.
Quase se debatia todo, mas olhava daquele jeito entre alegria e nojo voltando a balançar aquela careca cabeluda, aquele cérebro de castanha de nós no oceano de si mesmo, totalmente perdido e engolido pela derrota que sempre nos fazia provar.
Desviava-se de problemas, quando uma mulher bonita o encarava escovando os cílios: Essa tem facebook.
Não punha os olhos afiados de lâminas de cristal em mulher alguma mais, não mais depois de Eveline.
Para fugir das belezes apaixonantes, de pessoas de verdades escranchadas, tocadas, de pele e osso, claro, pés magníficos que serviriam na sua meia alma. Uma alma que era meia esperando os pés certos.
Viajava para Pontal do Paraná e se metia em alto mar, com certeza se enfiava num rancho na serra perto do Salto do Rosário ou se mandava para São Jorge d'Oeste e descia de caiaque inflável uma meia hora depois do portinho no Iguaçu. O resto dos dias mais sem porquê seguia para Dois Vizinhos ou para Nova York onde visitava alguns amigos e visitava lojas famosas de meias femininas.
- Que loucura, dizia. Meias com botões trançados eu nunca vi.
A merda toda começou naquele inverno em que as moças que gostavam de despedí-lo sorriam bestiais a imitá-lo.
Elas miravam os calcanhares, os sapatos, a presilhas, o contorno da meia, a meia propriamente.
 Era evidente que esse camarada, poucos sabiam, era um consultor internacional, um back-advogado, uma espécie de rábula que paga o sacerdócio e tem carteirinha de cretino. Para entender como é Claudinei é só fazer um traço, uma molinha, um círculo torto com depressão e, em seguida outra molinha e seguir o traço para enfim, completar a caricatura do sodomita e alagoano de Paranavaí.
- Claudinei, o Claudinei!
Pare de me enxer que sou um homem ocupado.
- O culpado, o culpado!
Que merda, falei ocupado cacete - dizia quando podia.
- Cacete, cacete.
O mais desafortunado recebia sempre palavras que não figuravam na lista do óbvio: Você é um imbróglio, um atestado de óbito mental, um parágrafo, um ato, decreto de aposentadoria.
- Meias palavras não atingem minha muralha.
Não dava outra, quem fosse, podia até ser uma coisa escarrada feita de vermes e sem vontade, uma gelatina, um cagão. Levantava-se e lhe dava uma porrada.
- Você está processado, pro-ces-sa-do.
Isso dava medo, ninguém sabe porque esse mal-estar. Ele conhecia, não a lei, coisa que nunca lhe interessou. Via a lei como uma peneira de buracos grandes. Passava pelos buracos a fechá-los.
- Não me venha com essa meia cara que sei bem o que está pensando, animal.
Jamais processou alguém, nem mesmo quando aquele idiota conhecido veio tirar as calcinhas da mulher do Luizão, dono da loja de meias, e no hotel Berlim.
- Quer que eu lhe enfie a meia na cara?
Em outro momento, conversando com o problema:
Ela deixou, ele a quiz, respondia.
- Meias verdades.
- Mas é um caso a ser levado em consideração.
O cafageste, rico, mas cachorrão, bem, ele tem um antiquário que todo mundo sabe vende peças roubadas.
- Pelo amor dos deuses Seu Claudinei, foi tudo um engano, eu pago o que for.
- Quer que eu lhe dê meia justiça ou justiça e meia?
 - Claudinei! Não fale assim comigo, não lhe dou o direito. Ednéia tinha os seus motivos, e Luizão que choramingava disse então: aceito, pronto, acabou.
- Vendeu a liga e ficou sem meia.
- E mais a mais não se defende moralidades, honras e coisas do tipo.
- Mas podia jogar areia no carburador, ia dar um estrago.
Processasse se houvesse porque. Não fez porque não devia e não o faria, a propósito de honra. Ela é da vara de família, mas mexe ali e aqui no administrativo e até comercial, entre ramos e sub-ramos da burocracia eletiva do direito, e do penal, nem se fale. Por isso não levou pras barras.
Mas não foi por isso, foi por ela, ele gostava dela, queria ela, ficar com ela, amava ela, e quem sabe até, apesar do cheirinho de rodoviária, ficar com ela.
Ednéia Paixão se preocupava mais em derramar a carne no tapete do que se submeter a uma vida em família tradicionalista como a do Lulu. Com mais de sete irmãos gabaritados em fazer desaparecer coelho da cartola, para não dizer enfiar a mão até virar chouriço, gostava de provocar, de causar espanto, de criar angústia em gerente de padaria.
Conversou com Ednéia e chegaram a um acordo. Ela mesma, uma doutora de altas barras públicas, ela jamais, nem que a vaca tossisse encararia um mal-entendido com sordidez. Era uma dama, de copas, mas uma dama.
- Clau, quero você lá em casa para discutirmos o ministério.
Ele foi, ela disse o que devia, ele ouviu, voltou na cara do tal e enfiou a meia, ele pagou, ele retornou, ela tirou a meia, ele desmaiou de emoção, e ele foi para casa com um retalho perfumado nos pés.
Voltar ao tribunal depois de tudo. Ter de ir porque as meias intenções seriam em par, conhecidas. Para tanto, para suportar o conforto do bem além de qualquer dúvida, vestiu a meia até meia canela para seguir com coerência. E ao seu cruel estado, à sua derrocada frente à ela, aquela que carregava o manto púrpura, na verdade o manto é preto com laços. Correria a alma por todo aquele sentimento de impossibilidade.
O caso seria levado à meia certeza, à uma meia-luz na caverna do diabo, o tribunal de Eveline.
Claudinei chorava pelos poros pensando nas meias vermelhas do tipo soquete que se encaixavam muito bem naqueles pés de anjo. Nada mais.
- Nada mais não, feitas para aquele pé. Feitas à mão. Trabalhadas com elastan e a mais fina seda carmim. Tintura especial, acho que tem coisa do Marrocos nisso.
Andou de um lado a outro frente ao edifício. Subiu as escadarias de seu cadafalso, sentou-se na cadeira de proteção do grande hall. Dirigiu-se à secretária, conversou com a agente, ela o introduziu em um vestibulo. Nesse lugar, nesse estranho espaço que dava para o recinto do juri. As portas magníficas. O meirinho passou e o cumprimentou com um gesto. Ele distante olhando o monumento da porta de alas fechadas, aquele trinco, aquele coisa toda.
O Pequeno pensava: se entrar ali saio carregado na maca.
Era assim que todos entendiam o pavor de tribunal do Clau.
- A demonia?
- Qual?
- A juíza da vara principal, aquela de vermelho.
- Qual?
- Você tem de baixar os olhos como que submetido e atacar as meias.
- A de meia vermelha?
- Ela.
- É juiza, não sabia?
- Não pode.
- Pode.
- Mas é maravilhosa, linda pra burro.
- Aquela ali casaria com aquele coiso.
- Com o Claudinei?
- Por isso que não processou.
- Imagina, aquele mirrado sem pele do lado daquela grelha.
- Não seja sanguinária, ela o deixou não, vírgula e exclamação com apóstrofe.
- Ela nunca manchou suas meias vermelhas naquele sabugo.
- É.
Antes de tudo, ele foi direto para a banca do Grande. O Grande era um sujeito largo, nada mais.
Chegou no consultório e trouxe a defesa do advogado.
- Ele não vai?
- Tá mal, a mulher o deixou por um desses.
Levantou-se, deu dois passos. Chegou à janela pronto para se jogar, para virar e sumir.
- O assunto está aí. Apresente.
- Porra Claudinei, vou ter de ler tudo isso?
- Se quiser ganhar a causa.
- Eu não acompanhei isso, o menino está doente, o Negocinho disse que não vem tá gripado, o Clarão foi ver uns negócios com a turma, sabe. Os pequenos, esses que estão de estágio não conhecem nada. Os novos foram para a biblioteca pesquisar. O Nico, aquele nanico, saiu com a Garota para ver a entrada no cartório. Não tem ninguém.
- Você.
- Eu não li nada disso.
- Leia.
- É muito, não tenho mais prática, a questão é que sou o chefe do negócio, você é o advogado.
- Ganhará se ler.
- Vou chamar o formando.
Formando, o nome, na verdade era Fernando. Era diplomado de última hora. E como se sabe. Os pouco que sabem sabem.
- Formando!
Mas em geral, a maioria dos formados só liam napoleões e outros cacarecos, além da lei, nada conheciam dos buracos, da peneira.
Nenhuma lei é humana porque não se reduz o homem a conceitos doutrinários como uma defeza qual seja, em síntese, discriminatória.
- Formando do cacete!
Entrou. Um homenzarrão de dois costados com uma voz macia.
- Oi, doutor.
O homem é a ventosa no tubarão, parece mais a rua de casa cheia de buracos.
Tem um olhar de ar-condicionado, frio, ventoso com movimento de abanador. Era tão subalterno que se necessitacem de um tapete ele se jogava ao chão.
- Formando, é o seguinte.
Claudinei ficou ouvindo todo aquele horror. A humanidade tem cara de governo, falta papel higiênico, toalha, café.
Grandão pegou firme, continou na tentativa de fazer aquele cérebro funcionar.
- Claudinei, esse menino é uma escultura.
Claundinei olhava de soslaio entre janela e a cara esburacada de Fernando.
O menino rio com os olhos.
- Oi Dr. Pequeno.
- Meu Deus - pensou Claudinei falando. Muitas vezes ele cochichava para si mesmo: Isso é de morte, mais vale um pão no chão do que nenhum na padaria, ninguém aguenta isso, e outras coisas como se falasse sozinho em um lugar que fosse permitido falar sozinho: O bicho gruda na obsessão; uns querem continuar colonizadores, outros escravocratas; esse tem complexo de areia de deserto; a cara muda, quieta, só muda com o vento. Coisas sem porquês: Pare de ser esquecido! Pare de constantemente. De talvez quem sabe. Meça as palavras, tem um metro ali na mesa.
Eveline o esperava. Ela o comeria vivo. Ela o derreteria no vinagre. Ela o poria pendurado no último andar e sem meias.
Era um inferno a vida do Claudinei, detestava imaginar-se em qualquer vara. Naqueles cubículos com banca alta, mesa baixa, microfone e imprecações técnicas com sinais, olhares, mexidas, risinhos escamoteados de velhos dulcinéios vendedores de coxinha na rodoviária de Curitiba.
- Claudinei, não.
- Claudinei, sim. Gran - apelido do Grandão (ninguém mais sabe o verdadeiro nome) -, olha, você mesmo disse o menino é uma estátua. O que vou fazer com ele?
- Leve de adorno.
- E depois?
- Claudinei, tá bem, vou pedir para a Marilda dar uma olhada.
A Marilda era de letras, um curso para pessoas ficarem atentas na sordidez do design das palavras e suas inflexões.
- Claudinei, responda.
- Se ela ler com acento.
No acento da sala, TV ligada, crianças brincando de qualquer coisa em si. Um dia antes de tudo, ante de entrar no buraco da onça.
- Marilda, faça ele falar.
- Fale.
- Não é por menos?
Então pegou o Formando e levou para um canto. Ela dava ação ao movimento, fazia sentido em quase tudo. Ouvia-se o estertor da estátua quando ela jogava ácido, quando punha no sal, quando queimava com suas palavras duras.
Claudinei lembrava. Ouvia Marilda amassando o pão frio.
- Fale com a boca aberta, não sabe o que é uma boca aberta, seu boca aberta?
Aquele grito da Jenifer quando o Zé do Patrocino disse que comprou aliança.
- Deus me livre, não dá.
Foi um caso, a Jenifer era uma estagiária adiantada, já muito além, apenas pagavam pouco, ela decupava todos os processos e passava para o Clau que lhe dava por baixo do pano meias e um bom dinheiro adiantado, ninguém sabia. O Zé do Patrocino era um fazendeiro que ganhou uma causa contra adubos químicos, que vinham com larvas. Casaram.
Geralmente o Claudinei montava a peça. Abertura do primeiro ato, entrada das  personagens, o que significa aquilo que devia significar - ele explicava para a anta do advogado como devia proceder no ritual maçonico a fim de ele saber como se comportar na sala do juri, cacete. E depois? Depois ele mostrava uma retórica que desafiava o Venâncio, o V nunca passou da Mônica. Aquilo fazia o V ficar vermelho como as meias da ex-mulher do Claudinei, muito conhecidas. Sabia que ela foi encontrada no Berlim só de meia?
- Uma meia só ou o par?
- Uma.
Tudo bem, isso já passou. Caso resolvido.
- Ela esteve aqui ontem, disse que quer ter contigo uma espécie de revanche.
- Sei.
Era admirável, podemos dizer, se assim o é, é.
O problema era aquela mulher. Não conseguiria mover a língua nem que engolisse Marilda pelas pernas e ela ensinasse tudo o que deveria fazer.
Vermelha, cor do sol se pondo, cor do sol nascendo, cor da luz na noite veronese quando acontece aquele enxame de pavor na praia e todo mundo diz baixinho que o mundo vai acabar.
- Justo nesse momento! - era uma das expressões mais fortes que Claudinei usava quando a água batia na bunda. Outras dele, outras que ocorriam quando terminava a Catilinária:
Puxa, mas é tanta gente dizendo que se ouve longe. E é isso, e é alguém, para estragar os mistérios dos deuses, e para acalmar os espíritos de porcos.
Nesse momentos ele se enfurecia e entrava em meio ao clarim:
Alguém não, o próprio lazarento do Claudinei surge.
Olha aquele puritano imbecilizado que lê livro com folha de bíblia e diz: Joel.
- Claudinei, quer levar uma pancada, não põe o meu nome no meio dessa bosta. Dr. Joel do Espirito Santo, sem mestrado.
Está na bíblia, seu cachorro, diz uma senhora da sociedade:
Joel diz:  o Sol feito sombra e a Lua vermelha que logo chegará o dia pior, do Senhor.
- É a morte Claudinei.
- Falei, tamo fodido.
Se o Clau fala é claro que é verdade, ele não perde uma na jursiprudência.
- Puta que pariu.
- Ele disse?
- Disque disse.
- Se ele disse vou sair com a Meire do Carlão.
- Tá louco, o tranca rua?
- O mundo vai acabar mesmo, que se arrebente.
Enfim, Claudinei apazígua: Hermógenes, silencio.
- Por que eu? Diz um tal Hermógenes.
- Não é com você babaca, é coisa escrita por Vespasiano ou outro mais das antigas que ele escarra de vez em quando.
- Não é.
- Foda-se, quero sair daqui, tá entendendo, pago você e os outros para sumir e não para ter que aguentar calado essa merda.
- O assunto é outro.
- E o que é então, cacete.
- No mito o encontro furtivo de apaixonados.
- Tá brincando.
- O céu feito janela de motel? Vai pro inferno.
- Cala a boca que o mundo vai acabar.
De repente alguém toma conhecimento de que se tratava o Pequeno.
- Deixa o Claudinei falar
- Fala Claudinei.
Claudinei diz de uma vez: Eclipse.
- Aquele carro japonês?
- Você tá louco? Quer ouvir o Claudinei!
- É isso, entendi: União, consórcio e comunicação.
- O Estado, o esquema e contar vantagem, em detalhes, sobre a lide.
- Cala a boca.
Na verdade Claudinei era insuportável. Ia de bicicleta para a maior banca do país.
O nome estampado e enterrado em famosos escritórios de advogados. Se não tava na sigla tava em algum lugar. Todo mundo sabe, mas ninguém diz nada.
Banca com sigla assim: CLAUROS - Claudinei, Rosinha, Orlando e Sirlei; CLAUFROMTE - Claudinei, Francisco, Roberto, Osvaldo, Maria Tessália, Elisa - LACLAU - Larissa Andressa e Claudinei, e apor aí vai. Ande pelo país e até fora - tá lá o Clau de Claudinei enfiado na sigla. Ninguém repara, mas eu sim, sei bem quem é esse. Conluio. Sujeira das mais baixas.
Claudinei saía de Vila Doriana, tambem conhecida como familiar e cheia de gordura, ia para o pacífico sul, para o nortão e para os éste todos do país. Ele pesquisava todos os casos em todas as bancas que carregava.
O seu Clau e fazia a prévia, a prática, a plena, e as específicas conforme o tipinho de sujeito que fosse atuar. A coisa vinha pronta, mastigada. Aí era pegar a Marilda, a de letras e enfiar na garganta de um recém qualquer coisa para dizer o que devia dizer.
- Ele vai chamar a Marilda, a louca?
- Espero que não.
- E agora, que será de nós?
- Será não, já é uma merda.
- Já imaginou a gente entrando numa biblioteca.
- Eu nem sei nem por onde começar.
Uma outra do Claudinei, essa ele usa pomposamente em público batendo um processo na quina da mesa, batia para marcar: Como é que isso aconteceu, bem no meu nariz?
Algumas pessoas acharam que, na verdade, verdadeira, claro - acharam que. Engasgaram porque eles sabiam que nada sabiam daquilo que realmente sabiam.
- Vamos acabar com essa históra, dizia Clau.
E Grandão que o conhecia muito:
- Não diga!
- Como vou encarar. É um roubo de energia elétrica durante 30 anos, e não dois.
- A tal Eva Line vai pegar.
 - Eveline, a juíza, corno.
Um dos réus se levantou estupefato:
- A Neneca! Era uma afirmação, não era pergunta alguma.
Eo Grandão:
- Ela.
- A ex do Clau.
- Nunca foi de direito, talvez de fato.
- É uma questão tipológica se somenos.
São meias atuações. Meias, entende?
- Mas a Neneca, aquela gostosona é louca!
Grandão interrompeu o réu:
- E é de bater o martelo na sua cara.
- Veja, Hotel Berlim!
- É, não dá.
- Só sei que a apoplética não suporta a réplica, mas segura a tréplica.
Mas a foto, mostra. Ela de troxinha, aquelas meias vermelhas saindo da banheira do tipo caipira no Moulin Rouge.
- Estava completamente de meias vermelhas, uma em cada pé.
- Eu falei, eu falei.
- E o dono da fábrica agora vai pôr os empregados embora porque a patroa resolveu dar com as línguas nos dentes e contar tudo para o cão.
- Mas  Eveline é uma mulher sensata.
- Essa mulher é do diabo, acabou com o Claudinei.
É um caso dúbio, família que põe a fábrica no prego por causa de uma bosta de trepada.
- Por isso não pego caso de família, esse negócio só dá enrosco. Se a Neneca tiver na mesa, tô fora.
Ela é quase uma esposa minha, eu falei o que todo mundo fala na conversa de cobertor, contei que pegava da rede direto a energia, que ninguém sabia, e que era por isso que podia comrar o que podia comprar, mas agora eu não sei o que vai ser.
Grandão deu uma cantada, pegou o sujeitinho, o Paulo Urso para dar uma volta. O Urso contou para aquela senhora amável como ele enganava os esquemas continuando a produzir sem pagar impostos, atravessando as mercadoria em bote salva-vidas para o outro lado do Paranazão.
Grandão tentou acalmar o Urso com pouco sucesso, ele ia e vinha com aquela fúria de ex-milionário.
Marilda explicava na sala dos fundos ao Formando o que aconteceu em linhas gerais para que ele pudesse gravar: ela o enfiou na traseira do mustangue, esbarrou no shopping como quem não quer nada e repentinamente estava na berlineta, enfiada na cama, carcomida e meia vermelha.
- Quem foi o fotógrafo?
- Selfie, seu idiota.
- Quem é ele, não está no processo.
O Clau, claro, ouvindo aquilo pensou nos anos de comodities, nos esquemas dessa gente, na beleza estonteante de Ednéia, uma mulher verdadeiramente doce, e que meias!
- Olha, ela sabia que o vampiro, esse tal era pau mandado da concorrência. Ela sabia mas gostou dele, uai.
- Filho da puta.
- Cachorrão, ouça primeiro.
- Urso.
- Seu Uros, . Ela ia engolir ele. Engolir-lo-ia. Ela ia engolir. Agora, que ela lho engolisse, não o fêz, o selfie caiu na mão da concorrência, e por fim ela se lascou: escândalo.
- Mas eu não estou escandalizado, a única coisa que me faz ficar puto da cara é essa situação, essas descobertas do leva-traz e tal, a passagem de um lado a outro, a mão molhada do fiscal, e o esquema no transporte para fora do país, só isso.
Claudinei pensava alto: Que desgrama faz esse pequeno insensato.
Claudinei ainda estava na porta, amortecido, o processo na mão quando entrou a escultura, Marilda, o Grandão, os difuntos réus, e, por fim, Ednéia. Ela o olhou como café doce, fumegante, olho com marcas de baton na xícara. Claudinei deu uma olhadinha sutil nas meias e apertou os dedos.
Claudinei abriu o tablete - tablet - para ver a sua coleção de meias.
Começaram a fofocar. Ele mandou calar a boca sem deixar de estar entretido. Falou para a estátua, o tal Formando Fernando: tire essa cara de riso e imagine a sua mãe trepando com o verdureiro no meio da rua e sem, sem meias.
O menino ficou duro, parecia que jorraria sangue dos olhos.
Um dia antes, depois de Claudinei voltar de Nova Iorque e vir do aeroporto até o centro de bike elétrica, o Grandão mandou:
- Vem logo que tem salto alto pisando no meu calo.
Só pode expressar: Pequeno poste mal iluminado.
Umas horas depois ele chegou no escritório.
- Solta.
- A juíza, doutora Evelise, a Neneca, veio aqui ontem com uma cara de cachorro americano cheirando tudo.
Claudinei voltou para a cidade, pegou a sua bicicleta na Vai-Motos e entrou no edifício.
Ele disse daquele modo arrogante e cusparento: Chame o elevador.
Despachada, enlouquecida por esse pequeno monstro de ninguém, a Neneca respondeu na cara: Elevador! Elevador!
Clau não cumpre brincadeira, derreteu a bicicleta no estacionamento do Velório, apelido do edifício paranavaívano.
E ela disse, disse sim: Vai apertar o botão.
Da meia, outra meia e um beijo nela, na Nene.
Ela sorriu e mostrou o fundo da meia e fez uns trejeitos à granfina, do tipo: comprei um fusca, tá na moda.
- Foi aí.
- Foi Clau.
Apertou o botão do elevador que tava contaminado. Morreu de luz elétrica.
- Morreu de Copel?
- Nem tanto,  ficou lá duro, enferrujado que nem a cara do Natalício depois da briga com o Bira.
- Foi um estrondo.
- Caiu tudo e Neneca levou o cadavérico para o hospital.
- No fusca?
- Que fusca, pegou um desse pré-moldado de qualquer etiqueta, e foi, ué.
- Morreu.
- Morreu nada, ficou comendo sopinha e dizendo aquelas coisas: orbis tal, data não sei quê.
- Ele disse na minha cara: Vou torcer para o Realengo. Que diabo e isso?
O olhar irrisório ganha dos pedantes ilusórios. Ser monge é colocar deuses no vazio. Troca o pão sagrado por CD. Não podiam ficar juntos. Ela bonita e tudo mais, ele um frango de cravos e espinhas. Ela, da família, ele, do mundo. Ela a juíza e ele, um causístico sem causa. Ela real, ele um fantasma. Ela com suas intermináveis meias vermelhas a pino, ele um amarrotado de sapato seco.
Entrar para as alturas, cerrar as portas, uma a uma, mão na meia, olhos na cara, um gosto de mel no suporte, um não sei quê se erguendo do fogaréu de evelítico com um ar de rodoviária interestadual, odor da fórmula jasmim e pinho, presença do satanás. Mas o que acontece com esses olhos de formiga cansada de carregar folha a vida toda:  medir a vermelhinha Evelise. Fixar no doce soquete. Claudinei é tão minucioso que, com certeza viu as micro rendinhas que a juíza estagnou ali, em horas noturnas despejadas no crochê.
Ele, aquela cara de cadela, dentões para fora, muco, um olhar desmedido grudando em tudo como se fosse pasta de dente na pia depois do escarro. O pior de Claudinei é o pomo de adão, parece que engoliu uma garrafa ou tem um ente de outro planeta que está preso na garganta e empurra com cotovelo. São ventosas, com certeza.
A questão era pôr os libertos na cadeia, ou liberar a Ednéia, ou ainda, passar a empresa para os empregados. Como fazer isso? Dizia.
O réu, um da trupe dizia:
- Cara, eu vou continuar aguentando o Clau se sair dessa.
- Vai, dívida eterna.
- Pode ser vingança.
- A besta sabe demais e ninguém aguenta, Geraldo, ninguém pode aguentar com um enchedor de saco desses.
- Enche o saco de dinheiro de todas as bancas com defesa pronta e procedimentos. O que você quer, disse o Grandão, ficar livre depois da merda?
- Isso é verdade.
- Ele já saiu daquele treco?
- O obituário?
- É.
- Ele continua no hospital ainda doutor.
Neneca não sai mais do obituário, fica lá beijando, apertando a meia, erguendo, abaixando, tirando-a na frente dele.
Bonita que nem é, ele vai voltar, e enlouquecido.
Botão do Velório dando choque? Os maiores bandidos de Paranaguá estão em Paranavaí, que se acha?
E o Clau sabe e Neneca não sai da cidade. Ela tá grudada no caso.
Veio uns office aqui rapaz, e as bancadas de Niterói, outra do Mato Grosso, a gente tem que baixar os olhos senão leva tiro, entende. Olha, tem de tudo aqui nesse amontoado de doutores da lei. Ontem o Zeferino Medina chegou com aquela cara.
- Alguém peidou no tribunal.
Esse era o sinal de que a coisa ia feder para o lado  dos fortes.
- Sem o Claudinei estamos fritos e com os gases amargos do empanturrado  Zeferino.
- Por que ele não cala a boca?
- Porque ele foi no esquema do justus, entende, o saia justus, aquele. E o cartório tá com assinatura até o teto, entendeu?
- Claudinei com Neneca, o mundo tá arrumado.
- Gente, vamos ver por onde começar.
- O Bastião Rosa foi contratado para esfaquear qualquer um que chegue perto do Clau.
- Aí a dúvida: manter o chato ou se livrar da putaria?
- Aí que tá.
A verdade de Claudinei e Neneca é fazer de conta que estão destrancados. Mas Oxum não gosta disso não. E é claro que é chave de cadeia.
- Perdeu a Neneca ou ganhou?
- Olha, noves fora, ele anda faturando.
- Neneca e Clau é um caso perfeito.
- Será que enganou todo mundo?
- A Nene tava com ele! Vigi.
- Tava.
- Esses assuntos escorriam feito catarro em elevador de justiça federal, parecia mais uma lazanha de fezes que servem no intervalo. Não se pode falar nada, nem conluio - Jesus meu, vosso também.
- Também.
- É amém, seu idiota.
A Escultura, o Formando Fernando ficava pálido, cinza, esmaltado.
A verdade de Claudinei e Neneca é fazer de conta que estão destrancados. Mas Oxum não gosta disso não. E é claro que é chave de cadeia.
- Perdeu a Neneca ou ganhou?
- Olha, noves fora, ele anda faturando.
- Neneca e Clau é um caso perfeito.
- Será que enganou todo mundo?
- A Nene tava com ele! Vigi.
- Tava.
- Leva os processos para lá, faz sopa de letrinhas e manda a Marilda enfiar nele.
- No Formando?
- No Pequeno.
- Você é louco, sabem quem é o Bastião Rosa? Você não tem idéia.
- E sabe quem é a Neneca?
- De uma e duas, ficamos ricos e suportamos a metidez.
No hospital, Neneca começa a tirar as meias. Aquelas vermelhas.

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