Coração de porco


Coração de porco
Pedro Moreira Nt


- Eu não acredito que você deixou cair ao chão a minha saia vermelha de seda pura da Vill Collection.
- Mas tia, foi sem querer!
- Sem querer ou não, está no chão!
Ela abre uma caixa cravada de cintilantes.
- Sabe o que é isso?
- Não tia!
- “Gel plane mouth”
- Ah!
A tia não tinha namorado, mas era vaidosa, gastaria o rim para comprar qualquer coisa que estivesse na moda.
- Mas ela é médica, não faria isso!
- Duvida?
- Não, nunca! É muito nervosa, capaz que faça mesmo.
Um dia a sobrinha mostrou o simpático cartorário aposentado.
- Bonitinho!
- Bonitinho é o feio arrumado.
- É simpático!
- Simpatia tem o vendedor antes da venda!
O sujeito sorriu para a médica.
- Estranho!
- O quê?
- Conheço aquela boca, parece Villmond no filme “As Elegantes”!
- Não falei, bonitinho, simpático e elegante! Fala com ele.
- Já falei.
- Falou?!
- É meu paciente, disritmia cardíaca, uma bobagem com cura se fosse responsável.
- Não é?
- Não.
O sujeito se aproximava calmo e compassivo, olhos grudados na médica.
- Ele vem aqui.
- Meu Deus, estou despenteada, não tenho mais “Hair Lux Light”.
- Dá licença, vou ao banheiro.
- Nunca, sua jaca, nunca! Não vai me deixar com esse formigão!
Ele senta ao lado no balcão do bar.
- Como vai doutora?
- Sem disritmia.
- Isso é bom.
O cartorário a mediu da sapatilha até o enfeite no cabelo.
- Você...
- Que intimidade é essa?
- Nada demais, são cinco anos que sou seu paciente!
- Nunca dei permissão.
- Acha necessário?
- Sem dúvida.
A sobrinha estava exprimida por beliscões na coxa, vez ou outra, quando tentava sair era lembrada pela tia que devia ficar quieta em seu lugar.
- Ai! - dizia baixinho.
Ele notou os apertos da cardiologista de cinco anos.
- Não vai ficar roxo?
- O quê, que ousadia!
- Os beliscões que dá na sua sobrinha!
Ela ficou sem resposta, procurou na bolsa alguma coisa e, desconcertada pediu para sair. No momento em quepuxava a sobrinha ele segurou sua mão.
- Está suando doutora.
- Quer fazer o favor de não me tocar porquinho?!
Quando a soltou ela foi um tanto desnivelada em direção à toallete, ia entrando no masculino quando se deu conta, olhou para o bar e viu a sobrinha sorrindo confidências para o paciente.
- Desgraçada! Eu mato!
Demorou na maquiagem pensando em uma saída. Estava presa e queria se desvencilhar  mas não tinha planos.
Sobrinha e paciente conversavam junto ao balcão.
- Gosto de pescar, pelo menos meu coração não sente.
- Minha tia disse para o senhor se cuidar.
- Ela disse.
- É pouca coisa, um cuidado resolvia o problema.
- Eu sei, mas quando a vejo dispara.
- Não acredito! É apaixonado por madame cardíaca?
- Isso aí, há um lustro.
A cardíaca volta perfumada e maquiada. Mudou a estratégia para mandar o cartório pelos ares.
- A gente já está indo, prazer em vê-lo!
- Obrigado, mas acabei de pedir uma bebida aqui para você e sua sobrinha.
- De qualquer maneira foi muita gentileza, mas tenho que ir, os compromissos...
A sobrinha entorna o caldo:
- Que compromisso, você não tem nada para fazer, o consultório está fechado!
- Acho melhor ficar, doutora!
Ela ficou quase em prantos de raiva e teve de ceder ao martini e gin com azeitona.
- Gostam daqui?
- Até nem tanto, foi um acaso.
A sobrinha sorriu levemente como que dissesse, vou dar o fora. E saiu de fininho como se fosse pegar algo do outro lado do bar, a tia tentou acompanhar, mas o garanhão dos papéis aposentados, segurou seus olhos com anzóis e espinhou sua mão como um ouriço. Era pescador em dias soltos e adorava a natureza selvagem, espinhenta.
- Que é isso, o senhor não tem respeito, não preciso ficar aqui conversando com um idiota, dá licença.
Ela bruscamente se retirava pela porta de vidro, ele sorria. Na rua, percebeu a gafe, havia esquecido sobrinha e bolsa. Ficou indecisa e quase bateu os pés antes de voltar. Enfim se recompôs e entrou ardida e ferina.
- Licença!
Os que estavam à sua frente assustaram, mas nem tanto o porteiro que já bem conhecia o seu humor. Um dia ele foi solicitar a gorjeta e a doutora, nervosa, atarantada, pegou a bolsa, enfiou a mão e tirou uma bala de caramelo.
- Toma, mas não acostuma!
Procurou pelo balcão e não encontrou o paciente nem a sobrinha.
- Desgraçados!
Perguntou com o sorriso deixando cair cuspe e bolhas para o barman.
- Escuta: cadê eles?
barman um tanto perdido:
- Quem?
- Ah! Deixa pra lá!
Olhou em todas as direções, mesa por  mesa. Nela havia uma navalha na garganta. No canto escuro perto da escada, o cartorário e a sobrinha conversavam amistosos. A bolsa em cima da mesa.
- Melhor desistir, se em cinco anos não percebeu o mal humor diário da sua cardiologista, ou é um louco ou gosta de apanhar!
- Masoquista?
- É.
- Nada disso, gosto de mulheres nervosas, e esta é bem o tipo, está enganada, conheço-a bem, sei detalhes.
- Conta!
- Troca a lingerie Closs Atom todo o dia com cores neutras, variadas, mas neutras; tem uma coleção de sapatos que muitos nunca mais vestirá.
- Verdade, como sabe da Closs Atom!?
- Sei porque atendi no Cartório uma cardíaca que foi gerente no Bella Vitta.
- Não diga! Olha ela lá, está espumando pela boca novamente.
Ele chamou o garçom e pediu que lhe entregasse um bilhete. Gentil foi até a dama e entregou.
"Quer que meu coração pare?"
Notaram que ficou vermelha, depois azulada, amarelada de secura na garganta. Foi ao Gentil e lhe disse:
- Escuta aqui, o tampa de poço!
Gentil era meio gordinho, simpático e bem a conhecia. À sua volta muitos riram às gargalhadas e o chamavam de tampa. Caiu novamente a cara no chão, mas recompôs exigindo que dissesse onde estava o sujeito que havia mandado o bilhete, falou sussurrando tão alto, engasgada que o bar moveu-se:
- Fui eu!
- Eu, disse um outro!
- Eu belezinha!
E muitos disseram sem nem mesmo saber porque razão: Eu! Eu! A doutora em pânico
estava para chorar, Gentil tentou acalmá-la.
- A senhora fique bem, quer um martini? Olha, este é por conta da casa, juro.
- Onde eles estão Gentil?
- Tenha calma!Um martini seco aqui para a doutora, Roberval!
Alguém puxou uma cadeira, desfalecida sentou-se.
- Fique bem, ele logo volta, vai ver que está no banheiro.
- Meu Deus!
E assim foi Gentil com seus copos. Em seguida estava sentada numa mesa com pessoas desconhecidas.
- Desculpa! - disse desfalecida, olhos injetados, tremores.
Gentil, o tampa, apareceu com seu olhar sério e lhe entregou o martini.
- Aqui está, seco, do jeito que gosta!
- Por favor, desculpa, retiro o que disse!
- Bobagem, fim de tarde é assim mesmo, as pessoas andam correndo demais; com sua licença  madame.
Novamente foi o tampa em meio à multidão e logo bater na mesa da sobrinha e cartorário.
- Ela está melhor!
- Entregou o martini?
- Já é o segundo dela!
- Manda mais um.
- Tudo bem doutor, aqui o senhor manda.
No terceiro martini ela já estava fincada. Gentil entregou outro bilhete.
“Meu coração por ti-gela, seu paciente”
Com certeza derrubaria a mesa, fez menção de um escândalo e o cartorário apareceu com a sobrinha.
- Onde estavam, deixaram-me aqui esperando!
- Venha com a gente, tia!
- Não! Quero minha bolsa!
Ela, quando nervosa, chegava a rouquidão de piratas e ciganos pegando relento.
A sobrinha entregou a bolsa e foi agarrada.
- Vamos sair daqui!
- Deixa que eu as levo - disse ele.
- Não é necessário, disse a tia.
Logo em seguida estavam no carro do cartorário aposentado, ele, calmo, levando-as para casa.
- O brigado, disse a sobrinha.
Fez um gesto com a cabeça. A tia tentou sair e ele a segurou.
- Quer me largar, seu miserável porco!
- Não sabia que era veterinária!
- Algumas vezes sou obrigada, porque pouco se reconhece um cavalheiro de um animal!
- Nesse caso precisamos nos conhecer melhor!
- Imbecil, grosseiro!
Saiu descarnada com ódio no olhar.
Ele olhou, viu bem a fera e pensou:
- Nada como um dia após o outro, beleza!
            Coisa de consultório, amanhã consulta marcada, a doutora poderia recomendar outro especialista, um colega cardiologista para atendê-lo e o deixava a ver navios, a se banhar na fogueira.  Podia até dizer que era assédio e nunca mais vê-lo em seu consultório.
            Estranhamente, no dia seguinte e no horário, ele estava lá esperando o pior. A sobrinha que também fazia medicina estava de secretária.
- Como ela está hoje?
- Vai ver.
            Pensou: serei descarnado e jogado na lixeira hospitalar com fogueira cigana sem luar, navio a pique sem mastro e vela. Posso dizer: vim para dizer adeus! Que chato!
            Entrou esperando o pior e a viu com a nova lingerie, saltos pretos e o tecido vermelho da Vill Collection.
- Olá porquinho! - disse afetada.





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