Herança

Herança

Pedro Moreira Nt






HERANÇA

Estava na sala de operação e podia dizer: 
- É grave!
Não disse porque não era, vesícula é fácil;  suporada não era fácil.
No seu caso um talho miúdo tirava em dois toques.
- Terminou!
- Posso abrir os olhos?
- Não estão abertos?
Casa, comida leve, televisão, água, doce, televisão.
- Livro não!
- Livro!
- Tenha dó!
- Do quê?
- Fico com pena de mexer com palavras doutor.
- Escreve então.
- Pior, quero calmante.
- Zenildo, calmante não dou.
- Pego outro médico.
- Ponho na cadeia.
- Por quê?
- Não precisa! Leia qualquer coisa. Joga xadrez!
- Coitado!
- Zenildo, fica quieto, daqui uns dias volta para o trabalho!
- Fico na TV.
- Não cacete, já disse para ler.
- A Mulher que Deixou o Amigo; A História do Menino Bonito que Não Sabia Falar; A Cantora que Desafinou; O Covarde Assassino; A Saga dos Bandidos - que ficaram bonzinhos; O Pecador sem Necessidade; Como Ganhar Dinheiro e Conquistar o Mundo sem Sair de Casa; A Ilha da Orgia; As Peladonas; O Homem Sem Motivo - é isso que  vejo o dia inteiro, não aguento mais Genivaldo!
- Chega Zenil, tá louco? Olha, tenho que atender, vê se não me enche, fica aí que nem abóbora que engorda, hei!
O médico saiu do quarto do hospital enquanto Zenildo derrubava mais uma lágrima.
Amigo de infância, amigo pobre, falido, não é médico mas é doente.
- Ele está aí!
- Quem?
- Zenil!
- Diga que fui pro Marrocos ver fazer tapete.
- Pra onde?
- Diga qualquer coisa Matilde!
A secretária tentava pôr os panos quentes:
- Tá no banheiro.
Na hora do almoço naquele restaurante de massa o garçom mostrando-se afável traz o telefone muito orgulhoso:
- Doutor, é para o senhor.
- Quem?
- Não sei.
- Desliga.
- E se for urgente?
O médico olha para o garçom com cara de bandido e atende:
- O que você quer Zenil!
- Quero minha vida de volta!
- Não reclama, já tirei a vesícula, a operação foi ontem, descansa!
- Não posso, eu vi o talho.
- Não reclama, seja homem e aguenta mais uns dias. 
O médico começou a falar alto, a pressão aumentou, andou com o fone pelo restaurante (querendo matar o garçom que neste momento estava atrás da cortina), o nariz começa sangrar, espirra.
- Por favor, ajuda!
- Zenil, seu desgraçado, eu já disse que isso passa. Tomou o remédio?
- Não.
- Não???!!!
- Não, fiquei com vergonha.
- Meu Deus! O seu caso é psiquiatria!
- Sou fracasso, sou um homem morto!
O garçom aproxima-se sem graça.
- A conta!
- Doutor!
- A conta!
Do outro lado Zenil com suas penas, suas dores no talho.
- Que conta Genivaldo?! 
- Não é com você.
- Veja que eu pago!
- Não é com você Zenil! 
O garçom apavorado:
- Cancelo?
-Eu disse para fechar!
Zenildo em prantos aos quarenta e sete para o amigo médico:
- Mas não está fechado este talho, Genivaldo?
- Não falei com você!
O garçom com a conta nas mãos, a platéia cochichando:
- Sim senhor!
Zenildo, o medroso, estressado, o acabado:
- O que faço?!
- Morre!!!
Ia  ter um colapso, o sangue que espirra pela roupa, no prato e no garçom.
Saiu do restaurante pra casa, pro banho. Na banheira comia queijo e bebia um tinto, ouvia Chopin  com descuido. O telefone tocou, esquecido atende:
- Genivaldo!
- Doutor, venha, seu amigo Zenildo se matou.
- Mais essa agora! Não, eu o matei.
- Como? Alô?
Mandou a ambulância até que no apartamento superior do hospital  estava o amigo.
- Como está? Viu pressão, tudo?
- Sobe, desce. Diz a enfermeira.
- Parecia bem, só não parava de me atormentar.
- O que foi que deu?
- A sua secretária telefonou, disse que estava morrendo.
- Depressão!
- Como não vi isso?
- Não se sinta culpado, é assim, isso mesmo.
- Errei, errei com esse apagão!
- Não fique assim.
- Ele me venceu na derrota!
- O que quer dizer?
- Nunca foi nada, e de repende veio parar nas minhas mãos, prometi cuidar, falhei.
- Calma!
- Não é que o cara tem um treco?
A vida era igual, o mundo pequeno, os negocinhos de venda, coluna de jornal seguia quente, tinha extras à noite na Universidade, vendia carros nos dias fechados, comprou carro zero, a vida era dura mas era sã e agora vai pro vinagre.
- A esposa está aí?
- Não é bem esposa.
- O que é então, transexual?
- Não, é a tia.
- Tem caso com a tia?
- Não, mentiu que tinha esposa, era solitário.
- Puxa, coitado!
- Casa própria, carro importado feito à mão, três bancos lotados, um monomotor, barco, casa de veraneio na serra e no mar.
- Era rico esse safado?
- Só tem dinheiro, aluga tudo, parece que nunca tirou férias.
- Infeliz, egoísta.
- Acho que não escapa.
- Culpa minha.
- Por quê? 
- Queria consulta  e operação de graça!
- Não fale assim doutor Genivaldo! Fale assim não!
- Aceito o amigo que tenho, fui  mal, errei.
Dez dias na sala de coma, por fim abre os olhos:
- Oi , Genivaldo, morri?
- Não, mas devia.
- O que aconteceu?
O amigo não contou nada. Dias depois em casa, o amigo lera o jornal, contava novidades, ficou a seu lado lendo “Moby Dick”, de cabo a rabo o  “Dom Quixote” e espalhou assuntos de diversão, passeios.
- Aluguei uma casa na praia, rapaz!
- Mesmo? Sempre quis, mas os negócios não deixavam.
- Zenil.
- Oi.
- Agora que está melhor, não quer dar um passeio de barco, comer um peixe, a Tânia, aquela da quarta série, lembra? Tem um restaurante lá na orla, vamos?
- Não sei.
- Não-sei mora com tudo-bem e vive sem-dúvida!
- É! Pode ser!
- Estou de férias do hospital, vamos nos divertir, fazer coisas diferentes!

Quinze de descanso, festa, fim de ano, amigos, a Tânia enchendo o prato.
- Morreu!
- Morreu?
- Foi feliz, passeou no próprio barco, descansou em suas casas, reviveu uma paixão infantil, comeu bem, dormiu e foi pro céu.
- Não tem culpa?
- Tenho felicidade, não porque morreu, mas porque viveu e eu dei a ele a oportunidade que negou a vida inteira.
- Muito bem.
- Amigo é para isso.
- Mas você é médico.
- Era, herdei tudo do morto. Às vezes é bom não saber que o seu amigo tem alergia a camarão.
















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