Perdi hoje o que mais sou






    Ele se foi, um pouco de mim se foi. Acho que muito. Ele era melhor do que as pessoas que um dia conheci. Talvez, nesse momento de tristeza e dor que sinto, estejam bem por saberem que sofro. Essas gentes que me exploraram a vida toda, roubaram meu tempo e rasgaram minha inteligência, querendo tirar de mim a minha loucura, a alegria que vivi, procurando alguma definição, a me esmagar em potes, explicar o que meus modos dizem, me pôr em vidrinhos para me apontar quem sou. 

    Quem sou? Eu sou esse que perde, todos os dias devido ao egoísmo e maledicência, que depois de longa viagem podem apenas me oferecer um jarro com água da pia, sou hoje alguém que deixa a felicidade para os que possuem coisas e nunca conceberam qualquer bem de viver senão o rancor e ressentimento, esse ranço de crueldade da espécie, que me levaram os pratos da mesa.

    Essas carnes frias que só podem rir de verdade com o sofrimento alheio, eu que já fui preso, sempre traído e abandonado no quintal daqueles que me amaram,  vivo dessa constante difamação, desse mal estar que distribuem gratuitamente à espera espreitada do fim. A sorte é que os deuses vivem da crença, a única abstração que justifica o egoísmo, a ação responsável porque acreditam. Mas é o meu sentimento mais doloroso, hoje, essas almas miseráveis que caminham sem ossos, certamente sorriem. Eu precisava esse caminho, sabia que podia deixar alguém contente. Hoje eu me enterro, viro cinzas.

    O que podem fazer? Morri de fato, um pouco mais. Eu os amo assim mesmo, o ódio de todos, as suas tristes certezas, amo essas duas patas que passam, amo suas ausências, as presenças, o grito, a voz da existência, o mal cheiro dos perfumes, a volúpia estúpida em desejos, a covardia da pele, o desespero e a frágil noção de permanência eterna, amo esses pedaços que choram, e estão potentes, duros, às vezes cantam, assobiam, mordem os lábios a dizer algo, olhos fixos, olhos definidos no trabalho como se fosse. Se fossem. Quando o cão morre, os diabos querem o céu e não o alcançam.

    Sempre fui cão, cachorro viralatas, plural em quantidade abanando a cauda, mordendo o vento, correndo em disparada para lamber minhas paixões, o pouco era muito, agora sinto que por ser tão incompreendido, a clareza da realidade é essa ignorância completa esse horroroso vazio cheio de nadas que os dedos indicam, que as vozes diárias clamam. Necessito outra vez daqueles que não me apaziguam, outra vez desse amontoado de ossos que falam. Se houvesse alguém que não buscasse me entender, seria menos triste hoje, se houvesse quem não me dissesse qual raça devo ser, como me comportar, como viver. Mas o bicho se foi, ficou essa quantidade de carbono. 

    Vejo as lágrimas, esses cristais que queimam, fuligens. Era tanto do que sou, atravessava pensamentos, voava sem asas, desavisado, tropeçava em si mesmo, insano, não entendia o que se dizia, não compreendia o que expressavam, liberto em palavras, era inteiro confundido, se bravo, se alegre, se brincava ou se atacava, todo estranho e divertido, tirava de si o que não podem imaginar. Imaginar, é de esquecer, impossível, a coisa, a materialidade domina, não podem imaginar. Perdi, outra vez, um tanto mais se foi de mim. E pude me ver hoje ante a morte. Ele era o que me construi em ser. Hoje alguém está em pedaços e eu não estou. Infelizmente não estou triste, ainda sou feliz, ainda amo. 

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