Ler e morrer é quase igual para certos vivos

 



A leitura é um acerto. Leitura tem disso, de leito, onde se deita no rio e se vai. Menos mal, passeamos, vemos lugares onde jamais estivemos e que mesmo não existem. A inexistência tão perfeita e cheia de vida. Fazemos amigos. Podemos falar línguas, caminhar desatentos pela Babilônia com uma boa frase no bolso, uma melhor, inventada. Sentimos os bons cheiros, podemos sentir o insentido, e tocar nas coisas, muito delas vivas, saltar significados, esquecer o pensamento, desatar as velas e seguir sem volta. Não há retorno depois do primeiro, segundo tombo. Levantamo-nos de um parágrafo, uma voz que narra, que nada diz, e ao dizer nada, tanto. Descemos e subimos ladeiras onde a civilização cozinhou o ovo; e a chuva, caímos delas ensopados. O fogo predestinado, e se está à volta com velhos desconhecidos. Nem que seja bom ou que nos desnorteie o excesso, a pouca linha, e as muitas fontes divergentes, mesmo carentes. Atravessamos a idade das penas, onde os horrores repastam no sangue, a carniceria aberta, os cães entrando. Corremos o vazio, e nele juntamos tantos perdidos. Gosto assim, provar mantimentos, deitar no invisível. Calmas de cocheiras onde passeia eumida, dar um olá para os não nascidos. Os que não vieram. Tenho firme luz aberta no flanco das minhas dúvidas, vaporosas, galatéias, dissolvidas, voadas, vento em areia, desertos de fluídos de cores que desconheço, que sei bem. O único barco polido, estanque com milhares de âncoras que gira mundos, sombreia as mais bestas esperanças, quebra os sinais de aviso, o perigo, ou a sorte. Tropeço sempre em pontos. Gosto pouco deles, essa respiração demorada incomoda. Faço de vírgula, e também leio ao contrário. Vi tantos poemas de cortina encerrados que visto do latim, do grego, dessas firulas dançadas, se abrem para o palco. Lá estão personagens que atores cautelosos e demorados, esqueceram. É uma nuvem de raios. Uma lanterna que falha na hora do crime. O desepero da fome. O medo de existir. E o lugar comum que tanto conhecemos em seu abandono, no uso do outro, na descarga miserável de almas tristes, não de tristeza, mas mal vestidas, carregadoras de marcas. Comparamos a crueldade latente, a se dabater ante a vileza, a nos jogar contra espelhos e a nos vermos como seres fictícios, de valores artificiais. E me deito a jogar o tempo para o lixo, lugar de onde veio, raspado nos devãos de poucos conhecimentos. Vai-te horas sem flor. Bem disso que pensava, no jardim de relva, feito na urtiga, sem o gramado plástico. Quando dou voltas nas letras enfiadas na cara, desvio, ando ao léu, saio do sério, e tarde lembro, no momento de lavar a roupa em casa; vem nas orelhas a fustigada incrível de algum discernimento. O preenchido de uma página, vazio e indolente como uma primavera que morre no inverno, uma estrela, faíscas que se tornam pássaros. E saio por fingidos labirintos, dizendo a mim mesmo, não entendi, não compreendo isso. E rio dessa desfaçatez, desse desajuste lacunar da busca e do engano. Cada vez mais eu ponho a roldana fina, a mais apertada das calhas, deixo a corda corrorer e puxo água, sorvete, doces que gosto, invento sabores, figos, essas coisas. Puxo com força o que já veio, e faz tempo que está vivente ao meu lado. " Não leia os livros pesados," dizia mamãe, "experimenta os esquecidos," dizia meu pai, e ninguém mais lia ao meu redor. "Leia os bons," melhor dizia o cara do Alef. Nossa, que nome, que origem, que deixada que podia ser cortada, um pulo gigantesco na rede. Daí me vou no tricô das emoções em pensamentos, essas amarrações lineares, menos certas que os jogos, que as aparências, que os diachos chatos dos signficados, todos donos de si. Soubessem eles quanto eu os catuco, tiro uniões, vou atrás das curvas. Separo, junto, aumento, abro alfarrábios, e depois de tudo, descubro o enfezado, e o deixo a descansar na poltrona lúcida de Rodin. Assim me esqueço, como é bom perder-se. Continuo afável a suportar as tralhas do mercado. Os meus quatro que foram todos do Manuel Bandeira, e o asa por nós, como se dizia em Salacaibro, e, aquilo que mais ou menos parerecia no mar gelado, navegante, não há horizonte. O que será que  se quis dizer quando dizia nada? Era tanto. E volteio, dou de ombros como os espanhóis a desconhecidos necessitados de qualquer argumento. Ouço, ele vem. A voz de quem te ameaça. Ele vem. Sabendo-se da pirraça. Ele vem. Como irrita essa sabedoria caipira. Vou por destemor como navegante, e mais por ti - te deixo ouro, escondido, claro. Não tenho tempo maninha, não tenho Ló, sou de mentira, a verdade é um nó. Sair de casa é como desafivelar elos da corrente. Como pesa ter de ir sabendo onde. Aonde vai o pesegueiro na vez do vento; na tez do sentimento, vai dobrar as espadas do ar, caminhar na ensolarada, morrer o dia à facada. Esqueço o lido, nem sei da lida, deixo o armazem a borbulhar. Sabe, se a leitura fizesse gente boa, pudesse se erguer com aquilo que voa, pedra, matraca, encalavrava na alma uma batata. Faz nada ler. Ler é esquecer do jugo comum do não saber, e de saber a leitura de mundo, o choque injusto que se arruma no imundo. Não melhora gente alguma. Quantos demônios lêem, farofas em geral, metidos a deuses. E deuses metidos a cestas, cheias das estragadas. A carne fétida do egoísmo, o cuspe escarninho do rancor, as estampas da violência, o monstruoso não se arruma no passo, o interesseiro que vem pé-de-pano, as entranhas do mau em desalinho, as fezes da vaidade, nada melhora, bem sei por mim que não sou flor-que-se-cheire. Talvez, talvez, palavras, palavras que Hamneth não pode saber de seu pai. Meio fractal, quebrado na orelha, derrubado no judô, e agradecido, na porrada da disciplina, seja assim possível se saber um quê. Mais nada, de resto, do desencanto que é viver, a sorte no amor, o bicho em casa, as crianças, um gosto. Viver alegrinho como a tirar foto de cartão postal, no mesmo túmulo do conhecido, no cangote do jumento, a foto de um monumento, e se meter a dizer o que não se sabe com toda a dor de Arlequim. Copiar a vida dos outros para se manter na vida. Por nada, por desgosto. Ler dá essa recompensa, vai como aviso, mas não dura o esvaziar.

  

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