Calado




Calado

Pedro Moreira Nt



            Se fosse barco minha quilha seria alta demais para que, o calado, a quantidade que comprovaria tudo que levo fosse suficiente para suportar a carga do tempo. Por isso muitas vezes o calado suporta a ironia, que tem origem na raiva que se afivela a palavras para produzir certa dignidade a quem não a tem. O sujeito de ironia pura é alguém que não conseguindo suportar no calado de sua carga afunda na grosseria. O sujeito grosso é aquele que só podemos desviar, cortar não dá, suportar menos, subir é de pouca vantagem. O contorno, apesar de demorado tem a vantagem do não encontro. É como o ciumento que acredita que o mundo é tão seu que outros que vê a frente sente invadido. Vejo isso  em geral em chefias pouco produzidas senão na técnica e no cartão ponto. Gente que o calado não suportaria o vazio, um potencial que não se preenche da troca de conhecimentos senão de carregar a vida feita de direçõs limitadas. O orgasmo de pessoas assim se dá nas coisas, nos objetos que possuem não havendo arte, literatura, conhecimentos dialógicos senão a pura e cínica estrutura polida de vida presa à etiqueta. Visto que normatizada suas vidas se preenchem dos vazios que as contém. Precisam do dogma, que os digam que sigam esta religião, que produzam, sentido de posse e materialidade, e inclusive pessoas. A idéia de pessoas como coisas persiste ainda na estrutura de pensamentos que realizam a casa com o magnífico e miserável quarto de empregadas. A pequena senzala, muitas vezes hoje substituída pelas obrigações legais legitimadas na carteira de trabalho.
            O sujeito calado é como alguém que passa imenso sem que se notem. Há felpas em Raquel quando digo não a ela, e irritações profundas em Martina quando digo-lhe que a dor do deus não seria a do homem.
“Pai, o que quer dizer “profundamente em si mesmo?”. Eu digo que é calado, a medida do que se leva e do que se possa levar, não a potência, mas o suporte.
             - Me tragam o telefone!
             Sentam à minha volta ao fogo, quando faço no jardim uma fritura, um assado no vaso de flores sem flores.
             - Cleide, sou eu. As crianças estão comigo, quer deixa-las um tempo mais?
             - Oi Gilberto, sou eu o Carlos Henrique.
              Era o Carlos Henrique, marido de minha ex-companheira, ele que me visitava faz muito tempo e nos trazia cogumelo. É bom, pessoalmente ele é a ponte do meu alívio. Estava com sobrecarga, então o porto veio em minha direção.
              - Pode ficar sim, Gilberto.
              Olhava minhas filhas e elas riam com os olhos divertidos porque passaríamos a noite no jardim conversando e lendo coisas.
               Naquele lugar está escondido algo, uma medida, alguma forma que mesmo não conheço, mas que presumo que vai além dos objetos, de uma língua aprendida, de técnica, do carro do ano, de um caso amoroso, da novidade tecnológica, do último filme, de um programa ainda não realizado, de alguma pregação religiosa onde vão bem os hipócritas.
                Deito à rede com a luz baça e começo a narrativa sobre o navio fantasma, sobre a esperança dos homens dividirem o dividido, de multiplicarem o silêncio, e assim vamos singrando a costa, pegamos algum mar difícil até ficarmos à deriva olhando estrelas.
                Raquel e Martina estão em seus sacos de dormir feito canoa. Elas navegam construindo ondas tentando desdizer, esquecer a vida, mas são obrigadas a compreender que se equilibram na profundidade do que está em si calado.
               


 (05/2008 – para o Caju)

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