O sequestro dos 20




O sequestro dos 20      
                                               Pedro Moreira Nt

                

 Queria que tudo mudasse que acabasse em pizza de planalto, coisa grande, que houvesse uma greve tão completa que o patrão me olhasse na cara e dissesse: engraçadinho. Você deve estar pensando que sou eu quem está pensando isso, não sou eu: é o Ernesto.
                Ele está no ônibus branco. Ônibus de indústria de trabalhador. Mas hoje, incrivelmente não está indo para o trabalho. Às cinco horas da manhã antes de muita gente ir ao banheiro, ele se encontra sentado naquele vagão móvel, naquela coisa poluidora, no cata-jeca, na ratona, no sovaco, escafandro, jardineira, no coiso, na lata de sardinhas que não passa de um caminhão seco, duro, desconfortável e barulhento que carrega muita gente para pagar um só.
                Você pensa que isso não é certo, quando vai lendo balbucia algo. Talvez diga: Não pode ser. O Ernesto faria isso. Ele ficaria daquele jeito de enforcado com as mãos, seguro no trambolho, preso à berlinda, apertado com as folhas caindo ao chão.
                O motorista hoje ta com um risinho doce, ta enfeitado. Ele devia trabalhar em frigorífico carregando porcos. Ele freia mal, acelera errado, mesmo com a marcha automática ele engasga ao tirar o pé do freio. Vai enchendo. O balance foi feito pela prefeitura com esse asfalto nojento que não dura nada, cheio de buraco mal tapado, e é feito para ganhar voto de trambiqueiros enfeitados, com blusinha de caiman, de jacaré mesmo, comprado a preço de banana numa pracinha suja de contrabando.
                Se estamos tratando dos 20; pense nos 20. Vai ver que é o número.

                Ernesto pensava bobagens. Será possível que ele é candidato. Ta mostrando o bairro - e eu já conheço. Pega mais um; outro corre atrasado. O Valdão é atrasado. Tem gente discutindo futebol.  Uns riem de si mesmo de um erro na máquina de frezar, outro trás de casa um livrinho de igreja e faz cara de salvo. O ônibus cheio fede a desodorante de supermercado.
É a única igualdade tirando o uniforme.
                Ernesto trabalha faz tempo e já convidou muita gente para comer alguma coisa em casa. Não faço polenta, faço galinhada para o patrão. Ele não vai mesmo indo. Faço quirera, meu único direito. Grandes coisas. Passamos na casa da Marilda, ela tem um caso com o pedreiro enquanto o marido viaja. Por isso nunca termina de arrumar a casa. Ela deu o filho para a Ana cuidar enquanto namora. Desde cedo ela está feliz com aquele sujeito. Todo mundo sabe menos o Geco, ele não sabe nada ou finge não saber. Anda pra lá e prá cá antes de chegar a casa, telefona, bate à porta só para não atrapalhar.
                Ela atende: meu trabalhador! Meu companheiro! Colega! Camarada! Minha dúvida. Atrás vêm mais três ônibus. Estranho, nunca andamos em caravana e hoje ta todo mundo junto. Essa besta desse motorista, eles sempre mudam para a gente não fazer amizade, ele tem cara de otário, ri a toa. Adiante tem mais ônibus, agora que estamos na BR penso no prefeito, como ele podia vir aqui e pelado pedir dinheiro de carro em carro. Ajuda o prefeito a cuidar da avenida, ajuda a minha próxima eleição, quero ganhar. Quero dar emprego para os primos do governador, para um agente penitenciário que conheci e que gamei.  Pelado na rua com as mãos estendidas, o prefeito diz que pintou o asfalto, que a vida é mais bonita pintada. Por isso devemos aguardar as eleições, por isso pede ajuda.
É um bom motorista, ele jamais fecha a porta no nariz, na mão, no pé, na cabeça, e veja como desvia dos buracos da rua com dignidade, salta lentamente os quebra-molas, estaciona no sinaleiro - já ouviu fala disso? - e mais que tudo ele vez e outra põe uma musiquinha.
Verdade, falei assim por falar assim, coisa que ninguém confia é quem dirige o gabinete, e ele está com as mãos no voltante. Tudo bem, ele é legal, parece gente boa, até ri  em fazer zumbido de mosca.  Mas hoje é um dia especial. Quanto ônibus, né.
             Os caminhões com cara de ônibus se alinham lado a lado. Parece que vai ter arrancada. Das janelas, sempre fechadas vemos aquela gente quieta. Aquele silêncio de rio descendo, vão cochichando, dizendo isso e aquilo, rindo, dormindo. Todos vieram, não falta um. O Zé mora perto da fábrica, mas pega ônibus só para contar umas piadinhas idiotas. “Sabe o que é o que é vai pra cima prata e ouro cai ao chão”. Os colegas respondem em uníssono: “Ovo”! E ele fingindo ser um idiota diz: “Acertaram!” E assim vai espalhando sua graça até sentar no fim como sempre. Isso é estranho, ele senta no fim. O fim não é um lugar. Todos escolhem um lugar para sentar e vivem naquele lugar não saem para nada, cada um no seu quadrado cuidando de si, se protegendo, escondendo a bolsa.
                Aquela coisa chorosa que é o freio, aquele barulho de abrir porta, o solavanco de novo. Um pulinho para acordar, para colocar as melancias no lugar. Parece que vou para outro lugar, que não chego nunca na empresa. Vou para um lugar distante do trabalho e sem compromisso. Vou me dar sumiço. Estranhamente ele passa da entrada que vai para a fábrica, estranhamente ele segue como se tivesse certo demais. Novo caminho. Desvio do tempo. A gente vai chegar atrasado. Ninguém da bola, ninguém. Eu mesmo não quero saber que diabo de desvio ele está fazendo, dane-se.
                Tem gente que não se importa com viagens turbulentas, mudanças de planos são muitas vezes acerto. Você lê e parece que já viu isso. Não tenha dúvida. 20 caminhões de marca, vinte deles passeando, seguem pela estrada larga, asfaltada que vai para a praia.
                O motorista está com aquela risadinha desgraçada. Tá não. Tá sim. Aquele jeito é da madeira.  
                O zunzum já começou. Alguns riem. “Ô motorista, já passou da entrada meu!” E a besta responde rindo: eu sei, o patrão mandou levar vocês lá para baixo.
                Alguns já se levantam, outros gargalham batem o pé feito criança. A Marlene do almoxarifado faz cara de exausta e despreocupada. Ela olha pra fora e aceita. Ela sempre aceita.  Todos os ônibus seguem em fila e buzinam. Pra onde vamos não sei. Só sei que não é para o trabalho. Quando chegamos ao fim todo mundo desce para ver o que é. Muita gente fora do ônibus a beira do mar.
Eles no celular, telefonam, falam com alguém, gritam, se reúnem e, de repente o telefone voa e cai na água. 
Todo mundo riu. Eita gente doida. Jogar no mar. Isso é poluição. 
 Os motoristas se aproximam e atiram em todos nós. Todos morrem. Uma pena, vinte ônibus tão bonitos, brancos, voltam para a estrada. Vazios. Só vou eu. A gente que negocia e perde os amigos.

Postagens mais visitadas deste blog

Nada, como estar entre a gente

Clientes amigos

Na ponte, Maria