Um dia entre eles
Um dia entre eles
Pedro Moreira Nt
Já deve ter ouvido aquela discussão
que fazem panelas, pratos e talheres cantarem fino em uma reunião familiar de fim de semana,
isso sem contar os copos e garrafas dançando na cara das pessoas, espatifando na parede.
A gente fica espantada como as
toalhas de mesa que, aliás, agarram tábuas de mesa, do aparador, da bandeja e disso e daquilo, frio e quente
suportam tal algazarra.
Já viu com
certeza, que muitas vezes os olhares ficam entre um sorriso e um deboche,
talvez escárnio, aquela ironia que a maldade oferece como brinde aos rancores e
desamores e tudo isso temperado com louro e alho: Uma folha de glória e um
mau-hálito.
Segue o arroz e aquela história de
que todos comem isso para saber que adoramos o arroio, que se trata de fartura,
de bem-estar. Alegria e comida. Amor com o propósito de manter o maxilar em
ação. Continuando a história, vai
levantando os temas mais profundos sobre juros e investimento futuro e isso não
quer dizer, absolutamente, que serão promessas que vai se fazer coisa agora a
fim de um desejo. Nessas reuniões que são misto de familiar e profissional a
boca molhada de saliva canina surge com mais densidade, alguém pergunta se o
fulano continua naquele empreguinho de merda. Perdoa, a palavra tem a ver com a
comida, pelo menos na ação futura do presente do investimento em comida.
Em seguida alguém lança um termo
novo, algo inesperado: Eu.
É incrível que aquela
individualidade se multiplica: E, eu, eu e eu. Para interromper o eu, nada mais
nada menos que a palavra agora. Agora, eu. E põem reticências em tudo como que
já conhecido o resultado. Agora eu posso, eu tenho, eu quero, eu sou, eu digo.
Esse acompanhamento de um solilóquio
público amplia a consideração negativa do outro. Melhora a posição. A reunião
entre amigos e familiares, entre funcionários e patrões. Aliás, muitos patrões.
Um cargo, um tijolo e o sujeito ergue o dedo, fecha a porta do escritório
porque está muito ocupado em receber a si mesmo.
Alguém pode dizer que é uma disputa
por poder, de tomada de posição estratégica frente a uma guerra que logo começará.
Aguardamos.
Você continua na mesma casa? Está
com aquele carrinho? Não vejo que mudou seu cabelo, querida. Menina, você gosta
mesmo desse folgadão. Teve que ser padrinho do filho adotado do patrão para
conseguir o cargo, muito bem. Não poderia pensar nada diferente da sua pessoa,
se é que me entende. Passe a salada fria, assim não se queima. Jamais diria que
é desajeitado para ninguém. Nunca disse que é incapaz de ler ao menos um livro
em um semestre, fora, claro os de auto-ajuda. Mais vinho? Hum, pensei que havia
parado de beber. Nada como um golinho atrás do outro. O macarrão está bem
esticado feito a sua gravata, lembra? Então deixou aquela seriema para casa com
a gata. Que idéia vantajosa, vai fazer
empréstimo para quem agora? Jamais imaginava que o partido político não tenha
colocado para fora, entende? Não estou rindo, desculpa. É que você fez uma cara
tão engraçada segurando o brócolis com os dedos. Sua mulher sai ainda com o
motorista para o trabalho, isso é muito bom. Pelo menos você não corre o risco.
Chegou tarde aquela vez, lembrou? O menino estava na cozinha com a garrafa de
guaraná. A sua profissão é professor, aposto, essa gente sem escrúpulos que não
tendo o que fazer dão aula. Dão não, cobram para maltratar os jovens. Sentam-se
frente a uma mesinha ridícula e apontam algumas palavras insanas querendo que
aqueles entendam que sai da boca de um ser sábio aquela mixórdia. Não é mesmo.
É como motorista de carro. Como assim, eu não estou insinuando nada, você se
ofende por qualquer coisa, o repolho. Passe por favor. Ela entrou com vestido
branco, para mim poderia entrar na igreja de luto. Professor como motorista.
Que partido político, aquilo é um antro, sabe disso. Não me venha com essa
história. Você me ofende. Uma ova. Está querendo dizer que ela é uma vagabunda.
A mulher dos meus filhos, é isso. O frango, amor, está ótimo. Só porque
apareceu aqui de carro novo não quer dizer que seja educado, bom, ético, sei
lá. Não me venha com essas histórias, devia engolir a sua saliva venenosa e morrer
seca atrás da porta. Cala a boca. Ninguém aqui está brigando. Gente, por favor.
Sou o que sou e daí? Ninguém está aqui para achar graça do erro alheio, se você
tem culpa no cartório, pague e pronto, não me venha com essa. A culpa é sua,
seu desgraçado. Então é isso, não basta ter de percorrer um dia inteiro para
chegar aqui e ter de ouvir o que se ouve. Atenção, chegou a sobremesa. Não
quero mais nada. Tem de provar. Deixa querida, ele está tratando a gente como
trata os alunos. Entra no carro e vira um monstro. Não senhor, está enganado.
Eu não parto a sua cara porque vou borrar a minha mão de maquiagem, palhaço.
Estúpido. Nojento. Está uma delícia, do que é? Pudim. Viu, por isso que tem
essa cara mole. Vai rir da tua mãe com o verdureiro. Isso é idiotice. Coisa de
gente pedante, entra na sala e se transforma, vira o cão. Um idiota arrogante.
Um cargo, um tijolo, sobe em cima. Tira esse olhar que sabe tudo, isso dá
náuseas. Tá muito bom. O que desejo é
que o time chegue à final, ao menos cumpre tabela mas não passa vergonha. Nada
disso, as crianças são triste porque o pai é um ego, um eu inteiro, eu maior
que a casa e o carro novo que ele beija antes de vir trabalhar. Morreria por
sua causa, e estou falando de dinheiro.
Quem pôs essa música? Aí é de matar, vamos mais cedo. As crianças estão
brincando. Eu sei, por isso que vamos, elas tem de saber que tudo deve ter um
fim, que é na competição, na raiva, na agressividade, no individual possessivo
que se vence na vida. Eu comprei um ferro de passar roupas automático com cinco
velocidades.
Depois caíram na pia, respingou no
chão, os pratos se debateram um pouco, alguns copos ficaram para o dia
seguinte, as panelas foram esvaziadas sem alarde, os talheres dormiram dentro
do jarro com água e vinagre. Tudo calmo, vai começar o programa na TV.
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Author Blog: matérias proibidas no fake bull