Na ponte, Maria

Na ponte, Maria


Pedro Moreira Nt




Todo mundo pensava que fosse possível o que de fato não poderia ser ainda mais por ser fatídico e trágico se acontecesse tal qual se podia pensar que fosse então pensado, oras.
Ele a viu e ficou daquele jeito que ficam os camelos quando olham para o deserto cheio de dunas: nossa quanta gente lá.
Olham e pensam camelando, duas sobre dunas, isso tudo é uma zona.
Então, lembram-se cuspindo e querendo vomitar que terão de caminhar no meio daquilo tudo sem saber porque razão e os demais sem-sentidos possíveis que tem o trabalho na vida no ato evidente e sacal de camelar para nadas.
E assim ele a viu como a promessa camelante de dunas sobredunas dobradas de paixões.
E marcou.
- Na ponte Maria.
- Maria não, Alzira.
- Tá bem Maria, na ponte.
Ela sem entender o que quer que seja, vendo que o sujeito era o sujeito daquele jeito que são esses sujeitos, apostou, fezinha que não suportaria a ponte.
Foi.
Não para camelar que era esperta.
Viu também aquela coisa, aquele mandrake apaixonado pelo cão, que chamava de lobo.
Pomba, será que ninguém sabe que se tiver um lobo, o sujeito dono é o otário, na verdade, para quem não tem idéia reinante sobre esse caso, explico. Lobo - alcatéia. Vive por causa da fêmea e na porrada, domínio feminino. O que o cara tão dono de si acaba sendo numa situação Maria - (tracinho) - ponte?
Otário o outro nome do cachorro que é. Isso não é meu, isso quem disse foi Maria, digo, Alzira que é Maria da Ponte para o tal.
- Mas por causa de quê vai fazer isso?
- Gostei, se gosto do doce pulo em cima.
E ela foi.
Chegou a hora, o jaguara tava lá na ponte, - não sei porque diabos pus ponte nesse conto -, enfim, ponte. É isso.
Pensem: noite, luz, lua também, arvoredos, verde-escuro de rio, cheiro macio de veludo, cangote de viúva, aquele perfume de chicletes no ambiente, aquela calçada que derruba madame, e aquele muro baixo, a borda da ponte que as crianças zanzam quando querem.
Estava lá. E la vindo.
E ele no relógio.
- Será que a cachorra vem?
E ela.
- Aquele camelo tem costa larga. Serve.
Encontro:
- Oi
- Oi
- Me dá um beijo.
- To com fome.
- Tá.
Tira do bolso um pacote de amendoim. Puxa vida, podia ser outra coisa melhor.
- Vamos até ali, diz Alzira.
E ele, o coiso, sem responder a segue por onde ele alcança as mãos. Quieto e cara de vou ficar bêbado para todo mundo acreditar que o mundo balança.
- Daí?
- Daí o quê? Nunca me viu.
- Vi, gostei.
- Então embrulha.
- Nossa, você é rápida na língua.
- Sou mais rápida quando como alguma coisa. To com fome.
- E o amendoim.
- Que tem?
- Não chega.



Ela nem responde, joga o corpo, finge ter um lenço no pescoço, finge que ri, finge que é amável, que gosta de samba, que corre de tarde para pegar ondas no rio antes que o tempo fique chuvoso, faz de tudo daquele jeito que imagina poder fazer o que queira e a hora que melhor tenha as intenções.
- Gostosa.
- Não como qualquer coisa, tem de se um restaurante bom, o do Zeca dá.
Ele coça a braguilha, olha a ponte, senta no banco, levanta, anda no jardim, faz que vai dar uma mijada e volta com um risinho fininho feito cabelo de milho, espigado.
Então vai.
É o que mais sabem fazer esses personagens: vão, vão.
Chegam ao restaurante, uma mesa, vela, mortalha, digo, toalha, e aquelas cadeiras bonitinhas e duras, aquele som ranhento, aquela gente de todos os olhos rugindo isso e aquilo, a porta aberta a janela, a vida afora, a cozinha pulando, o cheiro de gordura, aquela hora que é quase, entende.
Das umas até as quatros eu fico.
- Fique bonitão.
- Eu vou comer que to com fome.
O menino vem, ela chega de mão, passa devagarinho na borda da orelha e diz algo como, o de sempre.
- Não entendi o que pediu Maria.
- Alzira.
- O que foi.
- Nada.

E o nada veio com panelas fumegantes de pizza e coisa e tal, cerveja preta amarga, doce de lata, cachaça e uma espiga de milho cheinha de cabelo ruivo.
- Te amo.
- Nem te beijei.
- A comida.
- Bem terei ao menos isso, depois que acabar com esse mafuá de tralhas sem fim.

Ele pegou o pratinho, metido a grã-fino, metido a besta, metido a chato, metido a pequeno burguês, metido a otário, metido na gravata, metido na fome e avustou - essa palavra não existe, então, faz favor de não a procurar no dicionário.
E é isso. Comida, comida e comida, canha, bebida e bebida.
O que ele fez primeiro?
- Tirou a ponte.
Ela riu.
- Ahá.
Estou arrumando, levei um tiro, uma porrada na cara, tropecei no ônibus, bati a cara no poste olhando para ti, foi porque eu queria você, fiquei sem dentes, e daí. Tem nojo.
Claro que não, para mim pode pôr aqui na minha cerveja, põe, vai, põe os dentes aqui na minha braba escura, põe os dentinhos de amarrar, dentinhos de ponte dura e gostosa.
- Olhou para aquela coisa?
- Olhei, e di?
Então ela abaixou a cabeça e bebeu a cerveja com a ponte dentro, nisso ele engolia um pedaço de pizza passando pelo túnel.
Então, eu digo, então. Então novamente. Então ela levantou os olhos para ele segurando nos lábios aquela ponte. Nela, na ponte, um ourinho fajuto fustigava a noite trágica.
- Ó.
- Eu te amo Alzira Maria.
- Você sabia meu cão desgraçado, meu camelo sem corcova, seu duro do diabo.
- Sabia.
Então foi assim, eles sorrindo um para o outro, os dois de buraco, os dois de túnel atravessado de língua e beijos, eles dois tomando suco de ponte com cerveja.
- Eu sabia que aquela ponte no beiço teu, era tua.
- Que frase mais escandelária.
- Inventei para a gente atravessar a ponte.
E casaram e tiveram filhos e beberam muito, enjoaram de pizza e arrumaram os dentes e agora estão ricos, riquíssimos atravessando o deserto naqueles camelos que rosnam, grupem, enrodam e cospem na cara de qualquer turista, sabendo de antemão que lá não é mar, não é onda o que se vê, e o caminho é perdido de Maria e José sem ponte.
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Pedro Moreira Nt

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Tigre


Dedicado a Charles, o editor do Caderno Especial. Um cara sensacional que inovou o jornalismo com abertura de múltiplas atenções do público leitor. 
Graças a essa pessoa eu pude continuar a pensar que a comunicação através da literatura tem seu espaço no universo contemporâneo, que há poesia na vida, divertimento, estranhamento. São muitos contos, nano-contos, contos extremos, curtos e finalistas. 


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