A despedida

A despedida

Pedro Moreira Nt


Ela tinha, por cada pensamento, um estranhamento. E se vai um a ficar de cara,  sem dúvida, assustava o que restou da roupa.
Tinha nudez de pernas de piano de cauda. Uma nudez evangélica, de saia comprida e alma liberta. Colada, apertada na certeza.

A meia soquete, o sapato de verniz vermelho do tipo já volto. Aquele andar que batia estou ocupada, sou demais para esse terreiro. 
O cabelo loiro com um amontoado escuro no meio dos caracóis. 
Usava ainda um laço de fita púrpura. Na face um suave carmim, e do lado do nariz arrebitado como uma ponte de salto de skate era pequeno bem refeito. A boca daquela cor de tinta guache vermelho e contorno sutil de verniz. 
Demorava um tanto para pincelar mais de três camadas. Sofria, coitada. Quando parava o carro para sorrir para alguém ou fazer que vai assobiar, abria o porta-luvas e buscava o pincel que sempre estava ensanguentado. 
Entrelaçava os dentes quase transparentes de peixinho. Fazia sorriso de despropósito, aquele risinho que vai sair e é engolido. Jejo. 
Estava com um vestidinho muito curto. Fazia de conta que era antigo, plissado de gomos largos e engomados, uma cinta fina, da mesma cor com um ponto aqui, outro ali de amarelo ferrugem. As mini que usava eram de tons que lembravam algum tipo de fantasia, uma espécie de uniforme do dia-a-dia. Se fosse pegar algo do chão o fazia sempre. 
Uma mulher ocupada demais, dizia no seu balançar. 
Deixava cair algum envelope, uma bolsa pequena, a agenda dourada que sempre mostrava que estava muito compenetrada a ler coisas importantes demais para que não a deixassem passar. Uma técnica imprescindível de celular ativo, sorriso de dúvida, cara de séria, com certeza alguém precisa de sua ajuda agora. Muito importante que algo pudesse ser a prova de pouco equilíbrio, de ação estoica, séria e dura para os dias de hoje. 
Era tão mulher, viva, independente, solta, arrojada, executiva, dona do prédio, senhora de um famoso e-comercio, completamente aluada de obrigações e afazeres de banqueira, de empreendedora. Ia para a calçada o computador de mão, os fones de ouvido que pareciam brincos de pérola, tombava das mãos com luvinha de seda cortada para que os esmaltes de porcelana atravessassem como garras qualquer dúvida sobre as suas armas. 
Hoje de manhã caiu aquela agenda minúscula quando de um encontrão planejado, feito de olhos fechados na passarela em que era a mestre sala mais coquete. O trequinho no chão, pobre. 
Aquele estranho estranhíssimo de lábios secos, de olhos pendentes, de bolsas cheias, de paletós conhecidos, de sapatos amigos, de gravata sorridente, de bochechas derrubadas, um sujeito ao ponto de enterrar a caneta tinteiro que era muito irmã de seus olhos quando ia de passagem visita-las na vitrina das lojas imaginando quem poderia ser o dono. 
Notou ao canto dos olhos o relógio pesado de um dourado sem motivo, cumprimentou as horas que passavam ligeiro. Muito atenta a tudo, muito certa no investimento e em sua performance.
Jamais entraria em cena sem a marcação e o texto completo. Fez um suspiro naquele instante, um ar de morri mas vou acordar em seguida se um anjo do céu iluminado vir salvar. Jogou o traseiro repolho, os sapatinhos de um lado a outro acompanhando da escola e o que dizia o surdo no compasso. Sempre que podia, quando nenhuma concorrente estivesse na luz, virava os olhos para cima para mostrar mesmo que o branco podia ser visto da esquina da Cometa ao Cachorro Quente. 
O lance angustiante do brinquedo perdido, a incerteza de um movimento tão delineado. 
Obrigava-se a mostrar quantos exercícios realizava na academia, quanto sabia desdobrar-se. E o fazia com classe. Abaixava-se sem nenhum plier, quase um arabesque. Via-se que estava desnorteada, que fora jogada por aquele intruso, por um homem sem palavras, por um cruel machista e preconceituoso. 
O mundo sempre derretia, bolsas voavam, óculos deitavam no bolsilho, caras sérias transformavam-se em irrequietas formas de meninos obedientes.  Sem querer, dessa vez, mostrou os fundilhos com a pequena langerie borde amassada de um lado com as florzinhas brotando ao entorno.
Rosinha com fitas escaldantes, com desenho fino, bordado, mas flamejante de que compunha a moldura de sua sensualidade. Por algum motivo fora do alcance o sujeito parou, olhou de um lado a outro, abanou a cabeça ainda freando o calçado de solas polidas num escorregão que ante a certeza de ser levado ao encontro, virou-se em uma derrapada que quase alcançou a parede do edifício mais enfeitado da cidade. 
O único lugar onde poderia acontecer tal façanha só poderia ser no Batel na mancha divertida do granito que destoava com a fome pouco conhecida à mesa de domingo. Um surfista parou para seguir a manobra, ela estava quase estática. 
A câmera a pegava de todos os lados em uma lentidão absurda, mas aceita por estar tão absorta, completamente compenetrada em alcançar o seu precioso bem divinal que lhe dava tantas chances de conhecer quem eram os donos daquele mundo em que vivia delicadamente feliz em uma riqueza escaldante de verão quando o ouro reluzia sobre o peito amoroso. 
O movimento peripatético seguiu a uma patinada trágica em que mantido em pé sobre a prancha cortou a onda, alcançou a valise em um estado de certeza de que não voltaria os olhos um só momento para trás porque os ergueu ao vime que decorava o novo prédio e desapareceu no elevador. 
Quando retornou a si, quando enfim estava com a agenda na mão e a segurou como um santinho de proteção, deu alguns passos para trás a mostrar o alívio de não ter perdido a preciosidade, enfiou em sequencia a mão na bolsa e anotou algo. Ameaçou girar, mas segurou energicamente a emoção. E por fim sussurrou a si mesma no ouvido de seus pensamentos mais loquazes: Ele sabe que está despedido.
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