Desconstrução


Pedro Moreira Nt


Foi um dia difícil, trabalho, estudos, filhos, cachorrinho chorão a esposa com o olhar cansado, os dias novos de Curitiba com frio e chuva como foi antigamente. Tive saudades de um tempo molhado e friorento, mas não tanto assim. Podia ser menos, bem menos.
Em pleno período de trabalho seria impossível pensar em descanso com barulho de latas na calha e aquela música suave e confortável na cama. Ouvi histórias de gente que tem a foto da cama na carteira e que, durante uma reunião importante e cansativa abre e dá uma olhada sonolenta. Para que serve isso, pergunta-se.

Mas se o quarto entra vento, tem uma goteira, de fato minúscula mas que insistente mancha o teto, o abajur não funciona devido a tomada que está quebrada faz tempo, não dá para pôr a mesinha da cabeceira do outro lado, a mobília ficou emperrada entre uma parte da porta e o outro lado, onde ficava um projeto da escrivaninha. Bem você sabe que tudo está entulhado e não há tempo, jeito, método para deixar no lugar aquilo que pede espaço e não tem. Abre-se a porta para junto da biblioteca, tira-se a TV, quebra-se a escada que era um perigo, sem corrimão e deslizante de cera – porque será que a escada é encerada! Assim vai-se aumentando os arranjos, já estamos na sacada, não já descemos para o rol onde alguém deixa roupas amontoadas porque não há lugar para passar, e seguimos para a cozinha, tão pequena, precisa de uns três metros a mais e vai bater na casa do vizinho. 

Temos que falar como vizinho, a janela tem que sair dali daquele canto e vai para o outro lado, um muro, coisa simples, pequena. Meu Deus! Já estou falando no muro. Chegamos ao banheiro debaixo, ao quarto que deve ser pintado, porta também que está quebrou quando o pai dela veio e ficou ali preso. Nada demais, um gasto irrisório. Um pouco de planejamento e tudo vai bem. Então é a sala que é curta, torta, a porta não abre direito, a janela emperra, a outra dá para o vazio inteiro de uma pequena oficina que nunca funcionou. E tirar o carpete e começar. São apenas três paredes de nada para
quebrar. Algumas colunas de concreto e também, lembrei, ampliar o banheiro de cima que agora vai receber uma banheira.
Eu havia pensando em algo simples sem muitos danos, tanto no bolso quanto na arrumação propriamente, mas nem sempre aquilo que pensamos é o que pode acontecer. Às vezes nem chega perto. Começamos tirando algumas coisas de casa que não mais íamos usar.

Um chuveiro, poltrona rasgada pelo gato da vizinha, o aramado da parede que sustentava uma cortina cafona que mamãe deixou no natal passado, alguns tapetes que pertenceram à irmã da minha sogra, tia da minha esposa, claro. Quando vi tudo no caminhão de reciclado eu me perguntei: o que eu fazia com aquela mesa faltando um pé? Uma geladeira sem motor, um arquivo de aço enferrujado e amassado do lado de dentro. Percebi que havia coisas ali que não me pertenciam. O que era aquilo? O quê? Aquele negócio verde lá no fundo? Acho que é uma caixa d água. Eles me levaram a coleção de canecos de festa de chopp – que hoje sei valem uma fortuna. Bem, no fim das quantas recebi quase cento e cinqüenta pratas por tudo.

Mas é algo estranho, quando se entra em casa sem tudo aquilo que atrapalha, não se sabe bem o que fazer. Não temos onde pôr a mão, digamos assim. Um tanto de nossa identidade vai ser reciclada e não podemos fazer nada porque, com certeza em poucos dias seremos outros. Quem seremos não se sabe. Mal parei de pensar sobre essas perdas e ganhos sentado na banqueta manchada de piche do piano que abri com um nó na garganta ouvi o acorde melodioso do Altevir, o empreiteiro.
- E daí seu Antonio, vamos começar?
Começar o que, pensei, já estava tudo limpo! A minha esposa o atendeu mostrando até o riscado da cômoda no chão onde um dia teve tacos.
- Vocês podem ficar em casa mesmo. Não dá problemas. E mais a mais só vou trazer uns três ou quatro ajudantes e eles vão direto no que tem que ser feito.
- Sério?
- Sem pestanejar.

Nossa, fazia tanto tempo que não ouvia pestanejar. O que será que
significava. Pestana de um instrumento, tal, bem; lembrei. Eles não iriam
perder o foco, não iriam fechar os olhos iam se concentrar e arrebentar com tudo que fosse inconveniente. E no dia seguinte eu despertaria com uma casa nova, iluminada. De fato eu me despertei com o som do meu velho e cansado piano porque eles gostavam de tirar um sonzinho de vez em quando.
- Hei, não mexa no piano!
- Desculpa.

Telefona para o materiais de construção. Busca prego. Traz a janela,
essa não a outro. Aquela quebrou. Chama a caçamba de entulhos que a prefeitura não pega. O vizinho está enchendo a sua caçamba antes de começar.
- Escuta aqui, eu aluguei essa caçamba.
- Não se preocupe é pouca coisa.
Tive que chamar outra caçamba. O azulejo que era para o chão está na
parede da lavanderia e o azulejista me olha interrogativo. Gostou? - Gostei que estragasse a cerâmica do chão e pôs na parede. - Não tem problema, vai ficar mais forte. Pense nisso.
- Pense nisso.

Busca cerâmica, chama a mãe da esposa, ela tem opinião, começaram a lixar a parte errada, primeiro é dentro depois fora, eles entendem, mas não obedecem, a serra começou de manhã e foi até à noite, eles não podiam vir só para isso, coisa de nada disse a dona Júlia. Ela disse isso na minha cara.
- Não imagina o que passei.

Estou no médico. O psicanalista perguntou se eu não queria mudar de profissão. Ele me perguntou isso?
- O senhor sabe muito de materiais de construção e empreitada.
Eu não sei nada, odeio tudo, queria apenas um quarto e uma escada decente do tipo que a gente não escorrega e uma biblioteca arrumada e um computador e o telefone funcionando debaixo de um abajur que funciona, luz.
- É muito.
- Muito.
- Como pode ser muito?

A renite veio com o pó da parede do quarto, da sala, e o cheiro de cola e junto o pó de mármore e da serra tudo isso no frio e com uma bela e deliciosa chuva com gosto de tinta.
- Acende o fogão à lenha!
- Não dá. Eles tiraram, lembra?
- Não brigue comigo.
- Esse aspirador no meio do caminho.
- Engraçadinho, não queria que eu tirasse o pó.
- Por favor, posso subir até a biblioteca e me trancar até a morte?
- Não pode. Eles tiraram a escada.
- Quero morrer!
- Hoje não, mamãe e papai vêm aí e eu prometi que você não ia ter um
treco.

Desde que comecei a narrar isso já se passaram quarenta e sete dias
sem descanso com dois empreiteiros diferentes. - O jardim está destruído.
Nós havíamos economizado até os ossos do cachorro para arrumar o jardim. E agora posso ver madeira, cimento, caliças, restos de tinta, latões, latinhas, tralhas sem fim e telhas. Eu não ia mexer no telhado. Mexeram.
- Leila, meu bem, mexeram no telhado! - Eu pedi.
- E o orçamento?
- Estourou! Coisa normal.

Terminei aquele artigo sobre ciências na infância e levei meus filhos para o shopping. Era o lugar mais normal que conhecia. A natureza, enfim! Telefonaram à noite e tive que recomeçar uma aula sobre empreendedorismo e outra de ética para um trabalho na faculdade. Nada demais. Acordei sem dormir – isso é possível?
São apenas quatro ou cinco, no máximo sete pessoas estranhas andando pela casa. 

Alguém confundiu o meu relógio e levou sem querer, o gravador não está em parte alguma. Quebrou quando afastavam o piano para pintar a parede. A caixa de contas a pagar está debaixo da cama do cachorro no rol

junto da almofada vermelha que não foi para a reciclagem porque era de alguém especial que ninguém lembra o nome.

Devia ter passado das dez, eu me levantei da cadeira e juntei roupas e roupas para a lavanderia e coloquei na mala grande. Peguei a mala menor e fiz um ajuste com as da criança e de Leila, a mala do computador e alguns livros.

- Aonde você vai?
- Nós vamos.
- Para onde?
- Nós vamos para o hotel.

Escrevo desse lugar, de um lugar impregnado de despesas há pelo

menos cinqüenta quadras de casa. Nada demais, a reforma, a desconstrução fica pronta em dezembro, depois do natal, talvez depois do ano novo, no máximo passa fevereiro. As coisas simples duram um pouco.


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