Leitão leitoso

Leitão leitoso

Pedro Moreira Nt


Sabe, uma cara esparramada de leite tem fissuras. Muito pequenas, estranhas como pápulas. Eu o conheci no último gole, os cabelos crestados. Em um lugar de temperaturas variáveis as cicatrizes estendidas de antigas feridas retomam evidentes na pele em mínimas manchas inflamadas.
Quando falava sobre qualquer assunto espesso dizia amenidades com um ar de dúvida. Mexia o corpo incomodado, como se quisesse raspar a gordura toda. Magro e repentino, do tipo pronto para uma porrada. Tratávamos geralmente sobre coisas do escritório. Outras vezes risonho, fungava, escarrava para dentro tentando segurar o assunto. Disfarçava e coçava o braço, o cotovelo, e o saco.
Apesar de saber tudo sobre vendas, muito sobre bolsa de valores, vivia incomodado. Era a mulher, os filhos, a sogra, a tia idosa. Espantava os assuntos como moscas e abria um riso quebrado no rosto macilento.
Podia-se notar o nariz manchado. O queijo fresco carregado com pimentas muito frescas, vermelhas e finamente moídas fazendo aparecer ali em algum lugar pedaços maiores de quase sangue em redondas formas como de candidíase nascente, ainda na cor salmão, muito suave.
Falava com estertor sobre recibos. Odiava recibos. Dizia: recibo é o túmulo da grana que já gastei. Às vezes O carregava a boca em quantidade de coalho. Distante o hálito era leve de nata azedada.
Entrávamos no bar do Escala, perto da Cometa e pedia café com leite, do tipo brasileiro. Aguado, requentado, com água a mais também no leite que soltava aqueles barcos de nata flutuante.
Com o pano sujo no ombro o Escala servia a coisa já dizendo “vai dar urso”. Afogado na baba espirrava: vê um pão com margarina. Era de dar engulhos.
Será possível que o comportamento é um território da repetição determinada do hábito? Ouvia dizer: borboleta, aposto. A palavra aposto queria dizer: pão seco com coagulante e orelha de galinha ou margarina e leite com uma gota e meia do café fervido.
Por baixo dos tecidos da pele do rosto estão bolsas de máculas que não possuem ainda a força bacterial de colonias fores. Quando lotar, estiverem preenchidas de micróbio vão emergir dos poros encravados as mais novas fístulas.
Assim, uma situação ácida desenrola na mascara facial, percebe-se uma luta do bebedor de leite adulto, leite vacuum, leite de chifres e ossatura pesada que deformam. Por isso se debate, age arrastando os pés e ruminando aquela geleia na boca. Algo como lesma de chicletes. Ele repentinamente me olha na testa: vendeu o defunto? Uma certa angústia raivosa constipa o estômago e intestinos povoando o corpo, a musculatura.
Respondo lento, fracionado: o caixão foi pago.
Há nele o esforço tenaz de toda a carpintaria corporal em expulsar o constante invasor leitoso. Daí volta-se para o balcão, a xícara fria, aquele resto convulsivo dentro. Dá uma olhadinha alegre: E o seguro? Não diga que não casou o terreno.
Se as pernas ainda permanecem quase que íntegras se dão por lacerações realizada no movimento abrupto. Um arroto sutil, quase sonoro. Olha de um lado a outro, um risinho de vendedor de carro, quase esquizofrénico, de perturbação. Tenta bater nas minhas costas. Transpira e aperta uma e outra espinha. As manchas brilham como nódoas que fixam-se entre os dedos dos pés, geralmente o esquerdo, o lado mais emocionado. Não pode tirar os sapatos para esfregar as frieiras persistentes.
-       A ornamentação vai ser de primeira.
-       Quanto cobrou?
A sudorese fétida das axilas invade quando ergue os braços.
-       Cobrou?
Mexe na virilha. A humidade garante escamas e um mapa de urticária. A coceira persistente, a dobrada do corpo para trás em êxtase.
O leite, tão branco e calmo, feito do sangue da vaca mostra a origem com vermelhidão, bolhas, eczemas.
Pessoas do leite são irritadiças. É assim Fazêmo. Ele carrega mofo e catarro. O muco entra nas fossas nasais e causa muito desconforto. Não adianta tirar sarro, apertar cada um dos buracos. Escarrar no impulso da dor. A sinusite vem fácil, e junto a terrível gosma que seca. É um vômito interno.
Aquela coisa grudante, gelatinosa prende vírus e bactérias no esôfago, laringe, garganta, intestino, esôfago, articulações. Infecciona os olhos, e muitas vezes, escorre da orelha, move no cabelo seborreia, e um liquido escuro e amarelado de cera derretida surge.
Falam com muita saliva grossa, limpam o nariz que escorre, e vez por outra engasgam com engulhos suavemente compassados. É um momento de alegria, de êxtase. Limpeza.
Assim sufocam-se na compra e venda do branco, ao engolir a opinião branca, tecida no emaranhado da goma.  
Afônicos, buscando uma carta de nobreza em algum lugar do corpo gritam em sua direção afanosamente: sabe com quem está Falano?
-       Não sei, Falano saiu com Gritano e agora, acho eu, está no Balangano, o boteco aéreo.
-       Quer perder esse empreguinho de merda?
-       Quero, mas com uma condição: que eu não o ache de novo.
-       Vô falá com meu amigo que é filho do magistrado e primo do governador e você será fuzilado.
-       Balas de prata, por favor. Sou vampiro.
-       Comedor de sangue.
-       Comedor de leite – o sangue virado, a sopa do catarro e da meleca.
-       Palhaço.
-       Não sou vereador.
-       É pior.

Tinha as caixas altas, o cabelo ralo, as mãos pequenas, uma vida salva no trânsito, esmagado no ônibus sujo, na vida suja, nos dias escuros e chuvosos de Curitiba. Bilheteiro. Contava e somava, diminuía no ganho.

Morreu cedo, morreu de madrugada. Antes do dia. Foi a tinha, aquela doença feita do mofo que a cidade produz. As caixas de água onde nadam os ratos até a morte, foi na caixa, dizem, bebeu leptospirose. Disseram no hospital que entro pelo ralo. Foi vomitado da vida.

Quando chegou no inferno o prefeito local decretou leite para todos os endiabrados. Reconheceu o barrigudinho de óculos, o dedo em riste. Ele que era amigo dor irmão do primo do ex-concunhado de um antigo bacharel, filho-neto de um esperto lobista  na Assembleia – um nome que tinha acento, feito tinha, consumido -, ele, o tal não conhecia Seu Ninguém na churrascaria do Senhor.
-       Puta merda, você aqui.
-       Pois é.
-       E agora?
-       É o inferno, pior que encontrar vizinhos na missa.
-       Não vou em missa.
-       Nem pode, no inferno ele não aceitam. Missa, culto, etc. vão para outro lugar, para uma região além do inferno, um lugar pior.
-       E sabem disso?
-       Não, é segredo.
-       Ainda bem que estou no inferno.
-       Estamos.

Um dos demônios passou servindo: hora do leite.
-       Não, obrigado.
-       É obrigado.
Durante o tempo que estavam lá tomavam leite. Comiam como um porco, a nata, a manteiga, a lameira. Gases, a pele espirrava uma gordura insana, as unhas caíam picotadas, dores infernais (era o inferno) nas juntas, reumatismo catarrento, infecção generalizada (coisa de general), no sentido de sangue escorrendo leitosos, de furo de baioneta. Os poros inchados e virulentos, escamas moles, os olhos avermelhados como que em processo de putrefação. Toda a pele franzia. Se alguém, se houvesse alguém também, tocasse sentiria aquele peso. Quando se enfia a mão de dedo-duro no bolo, na manteiga, quando se fura a lesma.

-       Ficamos amigos.
-       Ficamos no inferno.
-       É.
-        A gente parece porco.
-       Leitões.
A porcaria infernal continuou até o momento em que perceberam que fossavam, enfiavam a cara na lama de corrimento fedorento. Eram fosseiros de superfície. Eram como fossa séptica no inferno de leite, do branco escumoso das vias mortas.
Inchavam, engordavam, focinhavam, e, exaustos, deitavam na lama de suas infernalidades, em fezes e urinas. Bronquite crônica, pneumonia e leite.
No inferno pode-se tudo, qualquer tipo de bom trato, do tipo: bom dia, boa tarde, boa noite, olá, com licença que são manifestações burocráticas para o tratamento. Um mundo ruim, de pessoas más necessita do apelo. O tratamento. O filtro, a regra, a norma, a censura em se dizer: quero pão, faz um sanduíche, o Zé está? Não pode. Tem-se de fazer a cerimônia para se proteger, para que não ocorra invasões. No inferno, toda casa tem sala-de-estar, uma sala que está lá para pessoas conhecidas e desconhecidas, depois de recebidas. Elas ficam lá. Para atravessar o lugar e chegar à intimidade da casa, a pessoa, seja quem for deve aguardar com retidão silenciosa o momento do convite. 
No meu país, antes de todos irem ao inferno, entra-se pela porta da cozinha. Qualquer um é bem vindo porque já é previsto no nosso itinerário cultural que toda pessoa é aceita. Já se tem o bom dia, o boa tarde e qualquer coisa que é apenas comprovação do óbvio.
Fora do país, esse tipo de coisa pode fazer entender a entrada do alheio, o ladrão, o esperto, o malandro, o mau caráter. Ousadia, sair dos limites sem conhecer as regras da casa. Ser destemido, sem medo algum. Temerário, pessoa que, tendo medo de tudo, encara qualquer coisa como último passo. Enlouquecido por medalha no campo de batalha, esse tipo de gente mata em quantidade, e muitas vezes escapa da morte certa por puro descuido. Poderia morrer o monstro, mas não morre. É elevado a uma posição de poder.
No inferno, quem cuida da entrada é Cérbero, um cão de três cabeças. O mesmo acontece na portaria de alguns edifícios, no atendimento ao público, nas chefias ordinárias da governança e na presidência de clubes, de instituições, de cargos governamentais. O sujeito é um monstro que se utiliza do filtro da boa vizinhança: olá, como está você? Sou o governador... Sou qualquer coisa nesse inferno.
Nas recepções do dentista, quando se vai ao dentista, a carrancuda sinistra atende: Nome...Idade...documentos...
No mercado é mais divertido, e nas filas intermináveis dos órgão públicos: Próximo... Um dia alguém responde: como sabe meu nome. Como sabe que me chamo Próximo? Ela responde com gratidão: É o inferno.
-       Você tá parecendo um leitão.
-       E você é um leitão.
-       Briga, alguém do inferno dos fundos grita.
Pronto, a vara de porcos grunhe esperando que rasguem a carne pútrida.
Estão prontos para atacar.
Eles lutam, se rasgam, machucam-se, quebram-se e depois dormem. E os demais fazem o mesmo, fazem a porrada. Os demônios que mandam no inferno saem com seus carros novos, saem com os vidros fechados e ouvem o robô dizer: você deve entrar à direita na próxima via para chegar ao bairro Abranches. E ouve-se de longe o grito de motosserras, caminhões que entram nos sobrados, atravessam canteiros, sobem nas calças, o contínuo som suburbano de roçadeiras de grama, de batidas de sinos desafinados, de risos empostados, e, claro, buzinas, e, ainda, mais que tudo isso, o som variante de alarmes: os de carro, os da casa.
Eles saem com a alma lavada, diabolicamente vencedores: egoístas, falsos, gritões, glutões, agressivos, competitivos, interesseiros, chantagistas, encrenqueiros, mandões e amáveis roceiros de gramado, limpadores de carro em minúcias, com cotonetes.
Eles dizem:
-       Não podemos brigar.
-       Verdade, não podemos, estamos no inferno.
-       O inferno devia ser quente.
-       Mas daí não dá resfriado, asma, renite, sabe amigo, alergias.
-       Estamos em Curitiba.

O divertimento do demônio principal é fazer licitação para a compra de pixe. Aos poucos a rua vai se enchendo de verrugas, cada buraco tapado é um tapa cínico da demoneidade. Depois o diabo mostra que comprou apartamento de milhões de fogos (fogos são o dinheiro do inferno local) com o dinheiro dos leitões inchados. A diabada vai para o congresso, são eleitos os piores.
Deixam em casa os tridentes. Naquele inferninho não precisam do instrumento. Lá o que vale é a ausência.  Quem ficar mais tempo fora ganha mais.
-       Sabe amigo porco, vou cair fora desse inferno.
-       Porco é você. Você que é um porco.
-       Não, está enganado meu caro. Quem é porco aqui é você, somente você e os demais, menos eu. Eu não sou porco, não sou. Pergunte a qualquer porco daqui se sou porco, todos vão dizer que não. Não sou nada porco, nem tenho cara, focinho, rabicó de porco.
-       Tem sim.
-       Não tenho.
-       Abra as mãos.

Notou que era sovina. Notou que as mãos não existiam, eram patas suínas. Ficou desencantado: assim não dá, como vou sair daqui sem ser reconhecido?

-       Podemos fingir que somos mansos.
-       Como?
-       Enchemos o copo com o leitinho, chegamos até a porta do inferno e dizemos ao cão: olá, como está você? Com licença, boa noite, boa tarde, poderia me deixar passar, por favor.
-       Perfeito.
E assim fizeram. Chegaram a Cérbero e lhe disseram as cerimônias. O diabo do bicho ficou confuso. Não era por menos, com três cabeças para controlar e ouvir incessantes gentilezas foi o fim.
O golpe do leitinho azedo deu certo, entregaram a coalhada, dois copos de leitinho. Uma cabeça tomava o leite, a outra tomava leite do outro copo, e a terceira brigava. Era um verdadeiro tratado sobre romance clássico. Enquanto lutavam cabeça a cabeça, eles cruzaram o disco final e chegaram à civilização saindo do inferno.
-       Que lugar é esse?
-       Paraíso?
-       Não.  O paraíso é chato, silencioso, as pessoas moram em casas frias, feitas de ouro e leões brincam com coelhos, tudo lá é louco demais.
-       É mesmo. Tem razão.
-       Vamos procurar uma placa, uma fila, uma padaria que saberemos se voltamos para casa ou se saímos dela.

Com cara de porco, jeito de porco, grunhindo feito porcos, cachaços, cada um deles sabia que tinham também o espírito do porco. O animal limpo feito de catarro, deitado na sujeira causaria cisticercose, o mau do porco é o mal que causam. O espírito do porco entra no homem e o domina, o faz enlouquecer e morrer em espasmos terríveis.
 Mas é o contrário que ocorre em maior quantidade. Os espíritos do mau entram nos porcos e eles morrem por não saberem mais por onde ir. Aonde vão porcos? Vamos morrer, vamos para  o açougue e depois para a sua barriga.
Vamos para o inferno de sua existência.
O espírito dos porcos eram: os que obedeciam feito bilheteiros arrogantes e a arrogantes que mandavam em arrogantes. É a porcaria geral. O vírus que faz os porcos contemporâneos se precipitarem – caírem no precipício e morrerem no rio fundo que fica lá em baixo, no inferno preparado para recebê-los, o rio leitoso, imundo de onde jamais sairão.
É o sangue branco, coalhado no tempo dos movimentos. O sangue-leite que os vampiros contemporâneos bebem.
Querer ser branco é ao menos desejar não ser.
Na branquitude está a ordem comum, leitosa do que vivem, do sangue do outro. Assim é a agressividade diária, a competição, o domínio, a rasteira. Já nela, por cada desejo, ela tinha sem tido pudor. O ar a fazia. Não na transparência latina da fome, mas do sufoco. Da gosma leitosa e musguenta de sua alma.







Postagens mais visitadas deste blog

Nada, como estar entre a gente

Clientes amigos

O ridículo em ser maltratado