O nosso passeio inesquecível

O NOSSO PASSEIO INESQUECÍVEL


Quando todos de casa se levantaram para a viagem de final de semana já havia passado de cinco horas da manhã.
- Puxa, por que essa idéia de viajar tão cedo.

A minha irmã caçula já estava deitada no banco de trás do nosso velho e incansável opala.
- Vamos chegar cedo à praia.
- Sair cedo não dá engarrafamento.

Assim sentamos os três confortavelmente naquele carro verde recém pintado. - Seis cilindros, disse a mamãe.
- E o que quer dizer isso, perguntou Clara. - Não sei, mas deve ser algo importante.
O carro roncou e saiu fundo, ou melhor, fundo roncou e saiu calmo da garagem. - Vai ser um dia maravilhoso, domingo a gente volta no fim de tarde.
- O carro está despertando.

Vinil preto polido, todas as lanternas funcionavam, ainda era escuro e podíamos ler o gibi com a luz que papai mandou pôr em cada lado e no meio.
- É importante ler, diz a mamãe.

Silencio aterrador do velho médico de família, movido com um meio sorriso calmo. Devia ter feito uma especialidade diferente. Ele se daria muito bem como cirurgião plástico. Vovó havia comentado que ele chegou a se inscrever na especialidade, mas não teve como. Muito ocupado, o time de futebol, o carro para arrumar, mamãe esperava mais um lindo rebento: eu mesmo. E depois a vida, sabe. Não era acomodado, não quis. Pronto. Devia mas não foi.
- As calotas ele conseguiu de um amigo no Rio Grande do Sul. O sujeito veio trazer pessoalmente com uma Jawa 1954, 600cc.

O vovô teve uma dessas, era o seu momento burguês de passear pelas estradas difíceis em duas rodas.
- Uma Jawa!
Não, eram as calotas do opala 72, quatro portas com um tuning interno com luzes direcionais que caia do teto como um feito dourado.

- As crianças não podem deixar de ler. 
- Mas são gibis que lêem.
- E daí?
Papai mandou arrancar, claro que delicadamente, todos os cinzeiros do carro. O banco tinha uma napa imitando couro. Ele mandou colocar uma foto bem pequena do Joari, um jogador do Santos que se dizia ser o novo Pelé. As políticas do futebol o havia posto de lado. Uma pena.
Por que a foto?
- Por que sim. Queria que pusesse a do Marx com aquela barba. - Ma por quê?
- Pare e leia o seu gibi.
- Não quero ler gibi.
- Não leia então.

Eu trouxe comigo um livro dos anos 70 de anatomia da coleção de estudos do papai, um pequeno livro descritivo das formas humanas, do corpo, das vísceras e tudo o mais com imagens densas.
- O cara ta mexendo em coisa errada, dizia o meu irmão mais velho. 
- Não mexa em coisa errada.
- Não mexo.
- Mas ele está mexendo.

- Fala baixo, vai acordar a Clarinha.
- Não sou clarinha, disse minha irmã.
- É sim, uma menina negra com o nome de Clara. - E daí, é o nome da santa.
- Mas a gente não vai à igreja.
- É porque o nome da sua bisa era Clara.
- Por que ela tinha esse nome?

- Por causa do barbudo, o cientista.
- Ai, pare querido, faça alguma coisa, faça qualquer coisa.
- Posso fazer uma coisa errada.
- Pode.
- Por que ele pode e eu não posso?
- Você também pode.

- Mãe, mãe.
- Diga meu bem.
- Qual cientista?
- Mas esse cara é esperto demais.
O meu irmão sempre interrompia a minha mãe. Ele fazia isso porque ela era cientista, de química. Mas o que adianta eu nunca fiz uma bomba.
Ficou aquele silêncio de carro limpo, lavado e esfregado.
O papai fez uma coisa errada, deu uma risada e ligou o rádio e pediu para que abríssemos as janelas lentamente para não estragar. Ele havia trocado os cabos de aço e a maçaneta.
- Papai pôs freio a disco.
- Porque não pôs CD?
- Por que é o nome do freio.
- Que nome antigo.
- É um disco que vai à roda, é de aço e freia. - Mas se não quiser frear?
- Daí não freia.
- Não é perigoso um carro sem freio?

- É perigoso, por isso papai pôs freios especiais, entende. Esses freios se chamam freios a disco. Por fim o meu irmão:
- Mamãe, o Francisco é muito detalhista.

- Devia fazer engenharia.
A viagem seguiu calma, mamãe abriu o porta-luvas e abriu um compartimento menor onde havia um rádio diferente do que estava instalado. Gostava de música francesa.
- Papai.
- Não incomode o seu pai, ele está dirigindo.
- Mas é que.
- Por favor.
- Já é um custo sair com esse carro antigo, não distraia.
- Por que a gente não tem um carro normal, eu ia perguntar.
- Opala é normal.
- Mas é antigo.
- É um museu.
- Eu não quero ir ao museu e sou obrigado a andar em um museu que é um carro.
- Não é nada mal.
- Papai dirige como se estivesse fazendo uma operação.
- Tem que haver cuidado, não sabe disso.
- Mas ele não acelera.
- Não vê os sinais de velocidade na estrada.
- Não vejo.
- Vai ver que tiraram algumas placas.
- Por que tiraram ninguém sabe.
- Isso. Durma um pouco querido.
- Mas eu quero chegar logo.
- Ta, então leia o livro do papai.

O meu irmão José já ia dizer que eu não devia ler o livro. Que eu não tinha idade. O opala deslizou tranqüilo até a casa da praia que alugamos. Entrou na garagem perfeito. Papai desceu rápido e assobiando.
- Não se mexam, disse ele.

Ficamos parados a olhar aquele homem gigantesco, um médico que sabia de tudo, que conhecia o mundo, que era demais, que quase não falava senão as coisas importantes da vida. Ele sorriu com aqueles dentes que pareciam doces de leite.
- Esse carro precisa de protetores para porta. 

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