O vestido do salto alto

O vestido do salto alto



Pedro Moreira Nt


Havia se desfeito de um amor. Antes passara mais que cinco minutos frente à vitrina. Ela deixara filhos, amigos, desejos conturbados apenas por um vestido rosa e salpicado de miúdas flores de campo entrelaçadas, vivamente decoradas no ponto de um antigo e raro bordado. 




Não era todo assim. Apenas uma parte dele era fincado de detalhes quase imperceptíveis no meio à estampa. O vestido a seduzira. Todo um momento depois.


Passou ligeira à loja de sapatos. Amava a sua coleção impossível. Não podia o vestido, nem ele caberia ao lugar, à cultura da tradição de suas amigas. A marca era tudo. O vestido não era de marca. Elas eram marcadas desde a etiqueta. Os sonhos eram conjugados em um condomínio interno. 


Esperava-se o porteiro abrir, esperava-se o cumprimento longo e chato, a notícia de algo chato e entrava-se no vestíbulo do pensamento, naquele lugar que as horas dançam e são pegas repentinamente no interesse, na coisa, na medida, na forma, no que representaria usar isso ou aquilo com aquela fivela escrita em estrangeiro que significava a posse da venda, a posse do produto que ela se fazia, como que carteirinha do clube e o mesmo ícone preso ao carro que dizia morar no condomínio da cultura útil, do negócio existencial, de se garantir a um futuro.

Foi por isso que não comprou aquela seda tão distinta.Era o passaporte para a beleza e, ao mesmo tempo, para a solidão. Já não suportava os homens.


 O dever de ser mulher de alguém. Dele, deles. O modo de vestir, a marca no traseiro, a utilidade subserviente feita de lisonjas e bondades inventadas para continuar no mesmo espaço de sobrevivência.Não seria feminina, seria a coisa bem cuidada.Que confusão frente ao vestido. Mudar o jeito de vestir, de andar, de falar, de conviver para uma pretensa liberdade.Os caras eram os caras. Tinham distintivo de lautos, de eruditos, de estúpidos com identidade funcional, eram assim.

A loja de sapatos abriu de vez as suas entranhas. Era uma sapatilha viva, conformada ao toque amoroso, delicada, e completamente entregue aos caminhos.Sapatos para sair, para ficar, para dançar, sapatos para surpreender, para se definir de um jeito e de outro. Tantos e em tantos mocós, esconderijos de guardados, de tempos e de vida despegada a seguir a rua, a viela que desequilibra e ao passeio na praça frente à universidade.


Poderia pôr a roupa que desejasse, conquanto usasse o sapato apropriado para o seu andar, para se apresentar ela mesma tal qual cria ser.Adeus vestido rosado, produto sem nome, sem endereço, feito à mão. Estava menstruada, ninguém a desejaria como desejasse ela a si mesma. E era tarde, estava morta, suada, cansada, despejada de sua nudez com aquela calça da moda, com a blusa da moda, com as joias, o cabelo arrumado. 

Nada a perder. Tudo a ganhar mesmo. Correria mais um pouco com a sapatilha até o banheiro. Beijaria na boca a amiga, sorriria despretensiosa, sem nenhuma marca, tiraria, por fim o creme da bolsa, trocaria o absorvente, cuidaria de si, usaria a toalete com a decência que tem que se ama pra valer. Banhou-se, cuidou-se, passou a colônia e o creme nos pés. Tirou as sapatilhas assim que a amiga fechou a porta.

Eu a amo, eu a amo, disse para si mesma duas, talvez cinco vezes. Apertou o batom na boca e abriu a caixa com o sapato alto. Elegante, noturno, tinha o poder de não fazer barulho, de não quebrar o chão avisando a todos que hoje não se interessava por homens, que hoje era uma dama saída da novela mais doce. Estaria com o vestido rosado, salpicado de flores delicadas de menina, com maravilhosos bordados à mão. Todos perceberiam que estava assim, vestido inflado ao vento, solto, leve demais para uma vida pesada. 


Pegou a lixeira e colocou as sapatilhas ainda novas, uma lado a outra entregues à sujidade civilizada. No centro, feito um presente estaria o absorvente usado, marcado de sangue. Caprichou, deixou elegante. Era como um caixa de anel raro, desses que se abre de par em par. Perfeito., disse para si mesma. 

Quem sabe alguém que passe, alguém que se lembre da mulher que é veja esse enfeite. Possa pensar horas a fio porque os deixei assim, e quem sabe descubra que hoje não tenho homens em minha vida, que visto um vestido caro, de rosas em seda, que nele há uma elegância proibida, sem marca alguma, que possui os pontos difíceis de um bordar demorado, que nele há dignidade. 

Pensem que ver essa lixeira de banheiro que arranjei um despacho, arrumei um abandono cansativo.


Levantou-se, foi ao espelho para mais uma escovada e se viu com o vestido, saiu com sapatos novos, enlaçados de alegria.Entrou na sala de aulas, sentou-se à mesa. Estavam todos em silêncio. O vestido lhe caia bem. 

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