Olhos da deusa

Olhos da deusa


Pedro Moreira Nt



José é Natal, não faça isso.
Ele continuava encima do madeirame.
Arrancou as telhas. E como se fosse tiririca na relva amontoou e enfiou a cabeça nos desvãos do ripado.
O que acontece com você? Ele estava lá.

Nada acontecia, era um tatu na verga, teimoso.
José.
Ela o chamava assim ao invés de Zé, Zezinho, Jo, Jojo, Jejo Meu. Eram tantos apelidos para momentos diferentes. Quando chegava triste do trabalho mofino, Zé; quando o fim do dia lhe dava um sei quê, Zezinho; e se vinham as novidades de um passeio e fazia aquela cara de deusa era Jojo; e a seu lado na rede do jardim, Jejo Meu, enrolada na alma apaixonada, com o cabelo escuro caído ao chão, no suave balançar do vento invisível, com os olhos castanhos onde o verde das árvores despertavam nesse homem que agora se amarrava no ripado do telhado.

Zeca, pelo amor de Deus. 

No desespero dizia Zeca. 
Na calma do orgulho, quando descobria alguma, e via os olhos de viva alegria e de culpa contrita, era José Carlos.
Amor, não me chame assim, não gosto de ser duplo.
Quando o coração temia que algo marcasse aquele corpo, que o perdesse por tanto que era, o chamava quase sem ar.
Jo.

Aquele fio de arame onde a roupa descansa morta, pendurada por crimes de sujeiras da vida mundana aguardava a chegada de um sol maior, de um vento pequeno de um descanso esticado e amarrotado em pregadores felizes.
Jogo fica bem assim amarrado em tudo que sou.

Arrastava uma voz engasgada, soturna que vinha de dentro da cumeeira.
Só um pouco, só mais um instante, eu resolvo. Eu vou dar um jeito.
Jejo.

Era tão alta, ele um palmo a menos. Magra, mas de força e um sorriso que surgia até mesmo preocupada. Pés pequenos que nem se acreditava equilibrava-se naquele saltos. Usava uma saia de algodão com recortes de organdy que lhe dava certa transparência e leveza, com tom esverdeado e brilhante, e a blusa bege de musselina com pequenos botões cobertos nas mangas 3/4. A pele índia e negra com aquela magnífica pose tão em si mesma, enfeixada em sua própria luz que as contas de nácar do colar pareciam um volume desperdiçado.
As dívidas chatas de sua história. 
As telhas sobrepostas junto à árvore do jardim tinham um não sei quê de tudo certo, de assim mesmo, de coisas boas que carregavam alegria e despejavam a mais vibrante ternura.
Mesmo quando José estava completamente molhado com uma chave de fenda, um martelo algo estranho. Até mesmo quando ele resolvia sair debaixo do armário alto da sala com um fio nas mãos.
Agora sim.



Parecia latejar na cabeça o que seu pai lhe dizia: nunca vai conseguir dominar essa loucura se não se determinar, se abandonar as obrigações, as responsabilidades, tudo vai desmoronar se deixar para trás um erro, um único.
O velho sempre teve obrigações com o descansar e sordidamente manipulava as almas lhes empanturrando de culpa.
Veja isso? Não vai dar certo. Você não consegue, esqueça. Deixa pra lá, não preciso mais. Depois disso eu pergunto o que vai ser de sua vida. E sabe, filho, não há resposta. Por que não faz alguma coisa. Ninguém te ensinou a importância do dever. Era o que eu esperava, sabia disso, desde quando nasceu eu previ que seria esse mole, essa vergonha.
Não é normal. Pode morrer.




Mas agora a coisa pegou porque José entrava no forno.
Mirna, eu só estou tentando - e parava a conversa entretido.
O vazio das sombras o chamava. O silencio permanecia como suspense.
Mirna, eu só estou tentando - e parava a conversa entretido.
Natal e morte certa. 
Mas agora a coisa pegou porque José entrava no submundo dos que se perdem.
Ter de se enrolar nisso, acabar com tudo justo no momento de levar os presentes. Uma fuga ou um distrato com a realidade.
Se não vier agora eu, eu.
Voz sufocada do Zezão:


Eu o quê?
Eu tiro a roupa.
Tá louca? 
Ela tirou a blusa.
Meu bem, não faça isso.
E ele se pendurou na calha.
Em seguida um peso balançou e um vulto afundou no jardim.
Ouviu-se um remexer e aquela expressão: ai.
Ela o encontrou no chão com alguns arranhões.
Meu bem, disse ele, eu sou louco.
Você não é meu bem.
Eu fui atrás delas.
Estava nos esconderijos para ajustar contas com as gambás.
Não têm culpa.
E sentiu remorso.
Justo no momento de levar os presentes. 
Querido, veja, você caiu aqui.
Eu sei.
Você não foi completamente, entende?
Ela se referia ao velho, à velha, à família e aquele peso morto de ser tão submetido, tão miserável consigo mesmo.
Acho que escapei das mãos deles.
Acendeu as luzes, a chaminé funcionou, a casa dos passarinhos estava pronta, o arame movido a motor de liquidificador movia-se placidamente, o telhado ficou limpo, o jardim estava aceso.
E o carteiro passou outra vez. E dessa vez que nem foi lembrada ele disse: feliz Natal.
E um envelope com um cheque magnífico foi-lhe entregue.
Jos - um outro apelido.
Você é um escritor.

Não é nada, nossa, é tudo, puxa.
Na verdade ele conserta casas e cuida de amar.
Alguém lembrou dele, lembrou de seus esforços em dizer algo a mais, em se preparar para o dia.
Car - o seu mais novo apelido íntimo -, você escreve.
Ele respondeu que poderia comprar um.
Mirna abriu ainda mais aqueles olhos de deusa.
Ele correu para o banco verde entre as pedras e em meio as luzes faiscantes de Natal.
Escapou Jojo.
Respondeu que o bicho não estava longe, apenas estava experimentando o lugar.
Ele foi embora.
Embora seja o sol da tarde.
O poente.
E voltará.
Uma fuga ou um distrato com a realidade.
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