A última cantada

A última cantada

Pedro Moreira Nt

Luiz canta no banheiro canções inventadas:
- Os  sonhos morrem na beira da estrada do esquecimento.
Ele acreditava no arame farpado na garganta.
- Canto espetado uma ova!
- Canta que nem fugitivo!
- Como será que canta fugitivo?!
- Fugindo.
- Fugindo?
- Fugindo do tom, da melodia.
- A invenção é minha, canto como quero.
- Errou.
- Tá louca, Cristina?
- Eu sou louca, casei com psiquiatra que inventa canção na ducha, sou, sou louca mesmo.
- Estrago tanto assim?
- Tirasse o microfone eu aguentava!
Luiz tirou. Cantava à meia voz.
- Saco, ando mal, queria soltar a goela.
O amigo ouvia no consultório a sua reclamação, a sua dor de cantor.  Luiz falava sem parar, sem vírgula e mostrava o álbum com  240 fotos de sua última viagem:
- Eu não sei mais.
- Sabe sim, doutor.
- Henrique, essa minha mulher é o inferno, não posso cantar, não posso desafinar, inventar nada!
- Ela é o quê? 
- É fagotista da orquestra!
- Fagote?
- Ouve pelo menos oito horas do som rouco de pato naquele negócio, porque eu, eu que estou no banho não posso ser seu marreco?
- Então é isso!
- Ué, grandes coisas!
- Além de ficar ultrajando a esposa devido aos ganhos de profissão e da maravilha de suas fotos, dos congressos sem fim, quer que ela se submeta à sua voz meiga de marreco no banho?
- É. É isso. Concordo, sou psiquiatra, sei bem disso.
- Olha, pense no que vai dizer!
- Isso mesmo, quero que engula aquele fagote até a curva do bocal e fique comigo do jeito que sou.
- Por que tanto assim? Quer que ela deixe a profissão para ouví-lo se afogando na ducha?
- Acho que sim.
- Já é chato demais ser médico, classe privilegiada na doença.

- Mas, e os anos de estudo?
- A dedicação à coleção de bric-à-brac?
- E os meus culhões, não conta?
- Por que diz isso doutor?
- O doutor não sabe?
- Saber o quê?
Henrique, médico otorringolaringologista pensava muito imaginando marreco no chuveiro com canção e letra própria.
- Deve ser o fim!
Cristina foi chamada pelo maestro a instruir e aproveitar para lembrar alguns atrasos.
- Andamento!
- Tenho estudado pouco.
- Noto bem.
- Marreco no banheiro...
- ... ele continua?
- O que faço?
- Estuda aqui no teatro!
Psiquiatra, estuda o fundo das causas, a alma humana no remédio.
- Não é bem assim.
Não é mesmo, ele não tomaria um sequer para curar-se. A cura ou a loucura por Cristina.
- Querida, eu te amo, quase não a vejo porque o consultório toma tempo, venho tarde e você já se foi?
- Tenho de estudar Luiz, estudar!
- Estuda outra hora. Fica, toamamos banho juntos, saímos para jantar, voltamos tarde e tralálálá!
- Que tralálálá é esse? Não posso, o repertório é difícil e tenho poucos dias, entenda.
Ele não entende, pato não entende, quer outra coisa: água! O psiquiatra foi conversar com outro psiquiatra, amigo, colega, coisa e tal:
- É vício compulsivo, vejo a torneira e tremo doutor.
O colega punha a mão fechada à boca querendo engolir o punho para não rir.
- Quando começou?
- Veio vindo, desde o namoro até agora.
O psiquiatra ouviu o psiquiatra narrando suas dores:
- Doutor, não vê?!
- O que será?

Depressão não era, medo de perder a mulher, temores sexuais, angústia, forma compulsiva, referia-se ao instrumento como a coisa que a mulher tocava; bipolaridade, alguma disfunção, exibicionismo, insegurança, achava-se diminuído pela música.
O colega vendo que o colega já havia dito o que devia ser dito entregou para ele um calmante suave.
- Não posso ajudar, música não é o meu forte. Fagote? Nem sei que instrumento é.

Ficou com o otorrinolaringologista:
- Mozart não tem culpa.
- Henrique, você ---- , acha que não tenho cordas?
- Ter tem, mas não é vibrante, entende?
- Até você?
- Até.
- Por quê?
- Música não é só matemática.
- É letra?
- Letrista?
- Letrista de samba.
- Manda.

Queria ser artista, mostrar ao mundo sua sensibilidade, sua pródiga afinidade com a arte.
- Serei amado, respeitado.
Achava isso, tinha vantagem entre outros sambistas, pelo menos não morrera de fome, erro médico.
- Médico mata a fome na doença, faz papel de pai e pune o doente com remédio. É como se dissesse: Escuta aqui doença, sai fora se não mato o seu dono.
- Remédio mata!
- Nem tanto.
Samba, música cantada, coisa batida.
- Já é triste todo samba que ri, agora, samba de morte?!
- E daí Cristina, já com inveja?
- Eu?!
- É.
- Não é isso.
- É sim, você tentou me derrubar, mas eu consegui, saí por cima, partido alto, entendeu?
Cinco horas da manhã e o pato virou a vitrola.
- Henrique?
Uma voz sai pesada, com raiva e desapontamento:
- Quem?
- Cris.
- Que houve?
- Ele fugiu.!
- Quem deu força?
- Henrique, não é hora, ajuda!
- Tá, vou ver se acho.
Encontrou o amigo num boteco caindo com um oandeiro:
“Basta de morrer
lá, lá, lá
Quero viver no samba!”
Henrique estacou, deu dois passos. Juntou o amigo pelo braço.
- Que foi doutor?
- Estou aqui para salvar a sua garganta.
- Olha, não queria dizer isso, mas tem um nódulo.
 -Tem?
- Deus, não disse nada.
- Não diga nada, pode piorar.
O carro para, desce o samba em silêncio, a mulher com os olhos injetados o apara.
- Olha Cris.

O otorrino o segura pelo braço:
- Nem uma palavra.
Três meses de silêncio, quietude e panta. o concerto foi, o ano novo.
- Henrique, pede para ele falar!
- Não quer.
- Como não!
- Prometeu.
- Credo, isso é desaforo.
- Fica bem, não é nada, deixa eu seguro.
- Segura.
- Junto os cacos e faço outro igual, crê.
Ela creu e aguardou.
- Como faz para receitar?
- Escreve.
- ... não pode.
- Ele fez Cris.
- Não teve problemas?
- Uma reclamação só, mas passou batido.
- Eu casa ele escreve, faz cartas, coisa linda.
- Não fala.
- Nenhuma letra.
- Puxa!
“Querida, vamos almoçar fora hoje, te amo.”
Dez de férias no balneário junto ao clube médico.
- O cão vai?
Escrevia:
“Vai!”
No restaurante, última noite de descanso pára um carro com o som alto:
“Alô gente, essa é do Luizinho do pandeiro, primeira nas paradas:
‘Deixa de morrer
Não pode acabar
O samba é triste
A vida deve continuar.
A Cris não me deixou
Fagote pode tocar.
O meu silêncio
É pra vida melhorar.’”
A fagotista olhou para o psquiatra e chorou:
- Lindo!
Ele falou:
- Estou curado, meu bem. 
Ela não resitindo pediu licença e foi.
Levantou-se e chamou o garçom.
- Fecha.
- Sim doutor.
Caminhou até a porta do restaurante e entregou um envelope para o motorista do carro.
- Leitão, aleijado, agora cai fora.
- Precisando doutor, olha, é só falar!

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