Daniela, com saudades

Daniela, com saudades

                                                                                                                                      Pedro Moreira Nt



Sabe, eu tenho que lhe dizer, ela é antiga. Feita de radio-novela. O sentimento que pode ter da vida é algo estanque, fechado em coisas medíocres das relações humanas. Não superficial, porque a tinta mais fina, o verniz mais leve que cobre a pele de sua ignorância é uma montanha de rochas eternas. O que pode fazer é reproduzir essa estúpida versão fotográfica, ninho de merdas que um clique qualquer, em um momento que não surge da memória lhe é assombro. 
Por isso você Daniela, quando pisa na bosta do cachorro e diz que sente o cheiro do ventre materno, e quando deita na cama nesse hotelzinho vagabundo com um idiota que prende a boca, fala gutural falseada parece ser um monstro que se tornou bebezinho e cuida dele, das armas, da cara enfezada que sorri indiferente a dizer quanto é ridícula, o quanto não é nada. Aquela alma inexistente mas que parece, de algum modo, não sei, surgir em meio a essa mancha estranha na cara de onde surge esse pêlo horrível. 
Pinta o cabelo para esconder a mexa branca, a cicatriz do tempo, a pelugem do passado esticado. Amo tanto você com o vômito que é e oferece. Como é bom ver as roupas sujas amontoadas, aquele verde piscina de limo, o cinza catarrento do mofo, os restos da depilação íntima escorrendo na pia em meio a espermatozóides, os restos mortais de óvulos perdidos jogados nos cantos da casa com sua trágica almofada de sangue. 
A sua tatuagem é natural, grandes olhos que pinta à egípcia antiga,  varizes, os desenhos, feito mapas que ajuntam lugares percorridos milhares de vezes por adoráveis maus-meninos, bons assassinos, gente que limpa o computador com cotonete e escarra na comida que serve. 
Vejo quanto os programas mesquinhos da tv te impregnam a fala, os soluços, um susto: onde já se viu fazer isso? Qualquer coisa que diga parece arrependimento de alguém tão acima das ondas morais que ao ver um nada, uma imbecilidade, a normalidade mesmo, toma-se de dor, espreme o espaldar da cadeira, segura a respiração, olha tensa para algum lado, dobra as pernas, enrijece a bunda, estica-se e deixa cair a mais falsa alegria que a dor pode oferecer, uma lágrima, umazinha feita de cuspe emocional.
Como é boa, gentil, carente, como sofre, que angústias passa, que loucura essa bondade nessa situação, dizem. E isso é amor. Em casa com vestidos de princesa, babados nos ombros como a loba dos sete pintos na floresta onde o diamante é uma pedra no caminho.
O sonho da inocente princesa que usa cuecas ardentes, as calcinhas pretas, vermelhas e de listras é   conhecer o carrancudo e dominar, o inseguro e se divertir, o sábio para descansar do vazio cotidiano, o bruto para ser amassada como papel higiênico e atirada no cesto, um estúpido silencioso de inocência para ter algum sentido, o vagabundo para que possa fugir de si mesma e se encontrar com os demais, aquele fleumático  sonolento de sonhos e palavras, um corpo caído, o louco saltitante, abstrato para que enfim saiba que possui uma perspectiva, um ângulo, opções para viver em si. Mas não os conhece por estar viva em sua caverna de dúvidas e de poucas descobertas.
Adivinha: temos bebida, um programa novo, e um comentário.
E a bondade é uma penitência. Sacrifício contra toda e qualquer natural alegria de viver. A bondade que expressa é um sofrimento para si e para quem parece direcionar. Que bondade poderia ter a elegância, a riqueza e o perfume? O cheiro da dependência poderosa dos que lutaram, os que possuem direito à rapina, ao roubo e assassinato, e os movimentos certos, calculados que possuem os vigilantes, cronometrados, feito de relatório e etiquetas, toda essa pobreza monetária ajuntada, pesada como deve ser a âncora que prende os que potencialmente são libertos. Tantas tralhas e comedimentos para ser que a sobra, o resto fora, nem mesmo os sapatos.
Ser bom por acreditar na morte. A boa morte que carrega os defuntos para um passeio nas alturas e nas baixaras. Navega nas ondas do fogo, de tal certeza sonhada que o real, o mínimo real que pode ser, ir ao banho tirar as cracas não chega ao meio caminho. Sempre salta o defunto que passeia: céu e inferno. O meio, a fé, nunca alcançada. A fé é o desvão da escada. Salta. O defunto que vive em nós navega entre desejos de subidas e descidas em tobogã. 
Daniela, a selvagem, com catarrinho verde no nariz cheio de muco, com pequenas e delicadas feridas,  e acne do tipo branco e do tipo peludo no azeite escorregadio do couro.
Pequena, ancas largas do tipo locomotiva, chaminé de cigarro, cabelos da cor do burro quando foge, amarelo escaldado, vinagre duro, embaraçado, fino e embaraçado do tipo trabalhei a noite toda, sou jornalista. Olheiras profundas de um velhice jovem. E os olhos espantados. A sobrancelha escondem ou aparam dois olhos esverdeados com manchas escuras. Cílios magníficos, implantados um a um na agulha. Boca com catéter, aquelas bocas que possuem um arame farpado e mostra as fissuras, carne pesada com ácido nas reentrâncias. Orelhas pequenas, as do tipo grudadas na nuca. Pescoço largo com músculos que dormem até a ponta dos ombros. Braços fortes e com barriga, barriga mole e cotovelos secos e sangrentos. A dobra tem um risco de sujeira guardada da noite anterior. As mãos parecendo que arranhadas mostram dobradiças enferrujadas e unhas de porcelana com fungo.
Uma mulher de cabelo torto deve ser alguma coisa de penitenciaria. E Daniela, presa em si mesma, na mais alta acidez de seus gostos tão comunitários, treinados a serem assim, ela é em suas belezas demarcadas no corpo, aquelas erupções na boca e pele, cândida, delicadamente depressiva, vingativa e triste.
Anda na areia, nas dunas afundando as canelas, escondendo e fazendo surgir à força contra o peso de suas raízes que a empurram para dentro em busca de terra e água. Mas vive no seco. Ergue-se como um castelo de espinhos.
Daniela quando está cansada debruça o corpo amarrando o interior, os intestinos de sua vontade onde guarda o tesouro intenso de seu real perfume.
O que há de bom, dane-se a bondade. Seja a bondade o espectro de seus seios vazios. São bons por não aleitarem vida alguma.
Às vezes penso no sono que teve com todos que não amou por não ter em si o significado. Faz sentido o que passa no vento e cai e se sabe que vem de uma árvore para o jardim, as folhas não caem da árvore inexistente no terreno da ausência.
Permanece no tronco da vida a promessa do fruto entre suas ramadas. 
Lasque e destrave-se desse mundinho fedorento cheio de "próximas guerras". Tudo vai acabar, tudo perde o cabo que sustenta a enxada. Eu que sou tão bosta sei do seu cheiro, de sua incapacidade mental de entender qualquer coisa além do óbvio.
Como pode? Bonita, densa, forte, com toda uma alma prometida, enrolada nesse corpo que atua passo a passo nos caminhos incertos da estupidez. Ah! Que inferno bondoso e sutil a recolhe a cada passo frente aos meus olhos. E gira essas contas de ouro verde em minha direção, ousa dar um sorriso a me chamar de cão, de pisar mais uma vez nessas orelhas surdas, nessa coisa que sou. 
Vê em mim toda a covardia que podem ter os valorosos. Aquele instante que necessita de quietude, de silencio trágico, de definição enfim, de dizer qualquer coisa com sentido. Mas nem valoroso sou. Esse retalho de vida é um instante perdido entre os ponteiros. 
Batem em mim as sentinelas dos reis com suas marretas sonoras num eterno big-ben de tombos no vazio. E as horas, as horas Daniela morrem nesse instante milenar quando me diz com todas as letras vá à merda, covardão. 
Como um cagão frente à beleza eu não me redimo, eu não digo que estou errado, que falho, que erro, que danço na esteira por onde segue delicadamente viva, levianamente amável como são as mais profundas formas do bem. São essas formas tão insuportáveis que grito qualquer coisa por dentro, estancando os músculos, calando esse peito duro que só possuem os idiotas. 
Daniela, dane-se. Eu a carreguei nos meus desejos até a ponte aérea. Sabe que não suportaria viver contigo, você que estremece frente à promessa de um cargo, 
de glórias, de dinheiro, de certezas materiais.
Como um verdadeiro e desdentado fracassado eu te vejo como as dunas que filmaram todos os mais amados fantasmas, tudo aquilo que surge e morre no horizonte do mais sofrido desejo de sobrevivência humana no deserto.
Eu grunhi como um animal na jaula indo direto para a liberdade, sabendo que a porta está aberta e se pode fugir para viver. E prefere o conforto da dor, da solidão, recheado de medos e completo de ódio por todos. Daniela, sua boca me chama e eu te xingo de desgraçada, de cadela depravada, rampeira maldita, feita de verdades e pureza que jamais terminam como exterminam as visagens. 
Toda real, toda viva. Eu te amo tanto que doem até as unhas, e há sangue nos lábios de tão apertadas estão as palavras. Se disser algo, sei que será o lançamento de coisas achatadas no ar que jamais lhe atinge porque é protegida contra a maldade.
Está no fim da esteira, aquela voz maldita de vaca anuncia que o vôo não atrasou. Um guarda olha as suas coxas, entra por suas entranhas. A moça que tenta impedir o meu olhar finge indignação frente à estatura de tudo que é Daniela.
Tento correr, tropeço nas minhas faltas, puxo as minhas covardias, as pesadas âncoras do barco preso no porto, a mala que sou, a bagagem sem assunto roda com dificuldade. Uma família de imensos estranhos tenta me atropelar, mas não sei de onde consigo todas as forças que jamais tive e grito seu nome, para que tudo pare, para que estenda as suas mãos, para que me ame, eu bosta de cachorro a me tornar algo. 
Eu tropeço, todos pisam por cima de mim, pisam na lama, na guaca-mole, aquela merda de vaca, espremida e escorrida. Sou um tapete de coisa alguma que tenta erguer-se e mostrar ao menos que tem um design próprio jamais feito por mãos escravas. Feitas sim de loucura e paixão. 
Eu me enrolo, eu me levanto, eu me abandono, eu derrubo as franjas de ignorância, eu assumo a estupidez e te alcanço.
- O-oi.
O sorriso enigmático.
- Grande filho-da-puta, cagão.
- Eu.
- Não importa.
- O que não importa?
- Nada importa.
- Nada?
- Não estamos atrasados.
Eu não sei o que aconteceu, mas o barco foi lançado, o tapete está na sala de estar, e as merdas fora de casa em algum lugar.
Essa dor, sabe, essa que tive, ela é antiga. Tanto tempo vivo com Daniela que para mim, a cada dia e instante é sempre surpresa, a mais bela, a mais impudente certeza de que o amor é algo terrivelmente humano e absoluto como o céu, como as batidas do big-ben dividindo o planeta.
Ela me vê como se fosse um sortilégio, como uma guinada, um desequilíbrio da qual eu me recupero a cada passo, cada um deles em sua direção.
Daniela, se soubesse que eu sou o mais desgraçado dos homens felizes. Vou ao quarto, à cozinha, ao escritório, estou em viagem, ao banho, no trânsito, na estrada, correndo com o cão, Daniela, com saudades.
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