Era ele

Era ele

Pedro Moreira Nt

Estava no shopping.
Ouviu uma voz desconhecida dizendo: eu-não-acredito.
Aquele que se diz estufando os peitos, com cara boçal e braços pendurados no ar com a boca tremelicando.
Era claro que zarpar significava pular fora o mais rápido possível.
Podia ser ele. Ele, sabe, aquele vizinho de vinte anos atrás. Era um tarado por abacaxi. Seria ele.
Com certeza era. Naqueles micro-segundos passou um trem bala. Está me confundindo, pensou olhando do último vagão aquela natureza morta.
Foi tão rápido, tudo que viu, a cara ainda não conformada no ar bafento do shopping.
Tudo pensamento, imagem. A confundiria com um ananás escamoso com coroa de espinhos. Não era alta. Ananás. Aquela coisa grudada, um chapéu duro e seco. Amarelada, um tanto verde e desenhos de estrelas. Fora isso a doçura de um domingo com a acidez de sempre. A velocidade de um abacaxi para fugir do caos é um tropeço no carrinho de supermercado, quase impossível.
Daí ouço: Não! depois em sequencia aqueles horríveis, não-não-não, e, por fim: Carlinha. E o "ar" sonolento, o tipo de "ar" que tem, gordo e risonho: Carlinha!
Estava enganada, não era comigo, não era, ninguém me chamava assim desde a infância. E, desgraçadamente era ele que me via como um abajour tipo abacaxi.
Puta-que-pariu, Carlinha não, Mané.
- Lembrou meu apelido, Carlinha!
E as pessoas olhavam, eu abaixava o chapéu, engolia o óculos escuro.
- De mini saia!
E todos olhavam, todos completamente. Todas as pessoas, todinhas elas me encaravam de cima abaixo.
Estou na internet ao vivo, estou me jogando da piscina para o trampolim.
- Cai fora sargento.
- Tenente.
Eu não imaginava que ele continuaria dentro daquele uniforme de obediência.
- Quem diria, rosinha no corpo todo, meia grudada, cinto na barriga, sapato alto, pulseiras e brinco de rubi, chapeuzinho verde com bordados.
- Pára, estou de vestido não mini.
- Mini vestido apertadinho.
Que coisa mais nojenta. Não sei para onde ir.
- Cacete, engordei.
- Você sempre foi mais estufada.
Ele me desembrulha, faz que eu volte sobre o que fui ou o que sou mesmo. Eu não queria ser o que sou, sempre acharam que eu não era o que era, que era algo com batismo e etiqueta de marca.
- Idiota grosseiro. Desaparece.
E ele desapareceu e corri feito uma boba procurando uma loja, um spa, os meus últimos 20 anos atrás, e um curso de russo.
Corri, subi e desci escadaria, fui à toillete e joguei fora o chapéu, lavei o rosto, e vooei.
Não sabia como sair daquele emaranhado de gente. Então vi aquela loja do Le Russian Light, um troço. E olhei isso e aquilo e vi ele. Aquele cara que eu amava quando era um incidente nefasto na vida de meus pais.
Era-ele-era-ele-era-ele e saiu:
- Não-acredito!
E o abacaxi me olhou. E veio em minha direção.
Aquele cara com restos de loiro na cabeça, um uniforme sei lá do quê. Tinha um destintivo. Veio empurrando as gôndolas, criando circuitos novos, desfilando para algum chefe dos chefes. Vinha para uma briga, uma desforra de covardão.
Perguntei para mim mesma: tá sonhando? E respondi:
- Tô.
Fiz um movimento lento para sair de fininho. E ouvi sonoramente:
- Carlinha, quanto tempo.
Deu tempo apenas de eu pegar o gás e injetar na cara dele, então desapareci.
É um dejá vous e pulei por cima do cadáver e me mandei pelo labirinto.
- Vou de elevador. Fui.
No quarto andar onde ninguém estaciona caminhei entre as pilastras tentando me recuperar daquele acontecimento.
- Eu não tenho cara de ananás.
Então ouvi: Atenção, por favor, atenção. (1, 2, 3) Sra. Carlinha, o Coronel Manuel a espera no serviço de pessoas perdidas.
Era eu. Tenho um namorado. Tenho um que se chama assim e sou isso mesma.
- Merda, perdi meu chapéu.
Pedi para o guarda me levar ao setor dos perdidos completamente. Eu, a perdida, segui o cara.
- Olá, estava perdida, eu acho. Tenho a impressão que desapareci e me encontrei. O meu namorado chama-se Manuel.
Aparece um homem alto, grisalho cheio de medalhas que me vê e diz:
- Não dá para acreditar, mas você é a Carlinha.
- Sou.
Pensei, quantos anos eu tenho. 37, 50, 100?
- Eu sou o Manuel Luiz da Ribeira, você namorou o meu filho. Lembra.
- Ah, sim, olá. Estou indo.
- Espera, você tem de ver a Carlinha, a minha esposa, ela está do mesmo jeito, alegre, sabe.
- Ah, então.
Aparece aquela senhora delicada, risonha e, de longe me reconhece de algum conto de fábula perdida na sua memória.
- Carlinha, quanto tempo.
Isso não pode ser casual, ele são monstros disfarçados de pessoas amáveis, eles vão me devorar. E ela veio com aquele vestido preto de deusa do mundo todo, ele, só faltou bater continência. E me beijou lembrando coisas esquecidas e também jamais conhecidas, eu acho.
Ela disparava a falar e rir a balançar aquele saco de pérolas luzentes que caiam rendadas do pescoço e do broche, e do par de brincos fabulosos.
Puxa, pensei: que puta coincidência. Estou louca.
Uma mão quente abraçou a minha mão. Digo abraçou porque na verdade engoliu, senti que estava desaparecendo.
- Carlinha, fique relaxada meu bem, sou eu, Mané.
Era ele o cara e eu era ela?
Ou eu não era nada, apenas um fantasma?
Resolvi o problema em uma sacada de gênia. Fechei os olhos e contei até 10.
Desapareça, desapareça, desapareça. Abri e imediatamente ouvi:
- Isso é demais!
Aquela mesma voz vindo de algum lugar.
- Demais!
Então gritei: o que você quer de mim?
- Quero-você-Carla.
Carla? Não era ele, não era.
Era meu marido, era o meu sonho, era aquele estranho que me encontrou no Shopping uma vez.
Era ele, e isso me bastava.





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