Gaia de ondas


Pedro Moreira Nt


Gaia de ondas 


Ele era o passarinho que nascera na gaiola.
 O tipo sujeito diverso de múltiplas plumagens, mas era meio daquele jeito. Só vai de um lado a outro, espia aqui e ali, bica um pouco e mal canta. A única coisa que fazia com gosto era com a sua companheira preparar o alimento bicando e alimentar seu único filhote.
O pequeno, com aquele ávido olhar voante, eternamente faminto repercutia um sambinha boçado no repique de sua chatíssima cantilena.
-        Puxa, não imaginava que é assim como é.

Como são desesperadores todos que ainda não saíram do ninho. Sacolejam o planeta inteiro, a Gaia pode despertar.
A escola de samba sem plumas ainda, esticava a cabeça desengonçada na passarela, atrapalhando o plano de aterrisagem do papai e da mamãe.

O filhotinho de espantado olhos amendoados e cílios grandões aguardava boca aberta.
E lá vai ele, e lá vai ela a cuidar, tratar, alimentar sem parar.
Comidinha chegando, filhotinho sambando.
           
A verdade da fome não transfigurava os pais, não os deixava figuras de linguagem, nem pareciam abandalhados, canhestros, poleeiros tristonhos. Nada disso, tinham no bichinho a esperança de arco-íris longe de céu nublado. Na verdade eles nem tinha ideia do que fosse, acostumados ao noticiário viviam na crença de que aquela cópia, uma coisa qualquer, um jeito que os deuses tinham quando vinham limpar o lindo ambiente onde viviam era lindo, magnífico, jardim de delícias, paraíso, sétimo céu, o lindo branco mundo guarani, e tudo o mais que achassem e nem mesmo imaginavam, mas acreditavam, aliás, tinham de acreditar na situação mundo que tinham.

Gaia, a grande e maravilhosa, ninguém sabe bem,  era o mundo rotundo e sem fundo.

-        Que medo.

-        Que me-me-do.


Azáfama da crueldade, não conheciam o vazio e o ronco do estômago, viviam acabrunhados, empenados por serem assim assado, bico longo de toques rápidos e gritos alegres, esganiçados porque o alimento estava sempre perto.

E o ridículo jamais inventado vivia no mundo afora.
           
            - Os deuses sempre nos dão o que comer e nada esperam de nós.
            Deus não cobrava, não havia impostos, sacrifício, penitências, obediências com as quietudes assustadas de olhos na barriga, nem mesmo se a indecência de estúpida tolerância.

            - Ah! Viver, a simplicidade da existência!

            Quando o filhote pode voar,  sorriam de puleiro a puleiro.
           
            - Vamos menino, diziam, a liberdade de voar é tudo!

            E o menino começava a ser moleque.  Às vezes estatelava-se ao fundo da gaiola. Engrupia um grasnado, um pi-pi-pi choroso. Os pais sorriam e cuidavam de suas dores.

-        Tente outra vez, nunca desista, nunca!
-        E nunca e completamente.

Completamente era uma palavra nova que ouvira do patrão, digo, de deus. Não tinha sentido, mas também para quê? Não havia significado.

            O menino criou em si uma vontade férrea, e conseguia na insistência tombar muitas vezes como alegria, a dor que sentia, a fazer manobras inacreditáveis naquele espaço tão irrisório da gaiola.

Gaia ondulava o mundo em quase certeza, vibrava a luz que turvava qualquer condição de comprovar que não era o sonho, nem era verdade, ou era mentira o que se via da janela fechada, agrupada e dourada.
Os deuses vez por outra surgiam, olhavam com encanto o desenvolvimento do passarinho. 

Diziam coisas assustadoras que ninguém mesmo entendia, mas que sentiam-se na obrigação de agradecer, algo movia suas almas, uma sensação de completa impotência. Logo que partiam todos gorgolejavam, cantavam numa insistência prolongada.

            Logo o menino desfilava seus primeiros acordes indo de poleiro a poleiro.

            Os pais estavam enlevados.

            - Como aprendeu rápido!

            Um dia surgiu um passarinho da mesma espécie deles sobre a gaiola.

            - Ora vejam! Disse o pássaro.
           
            O bom menino apenado, ficou encantado e disse: pai, veja, é um pássaro que vive em outro lugar, como será que veio até aqui?
           
            - Meu filho, deixa explicar uma coisa: fora daqui existem deuses bons e maus, existem pássaros de muitas espécies e cada um vive como pode, nós somos os escolhidos, nós temos esse lugar só nosso com tudo o que precisamos, esse estranho chega aqui por inveja, um sentimento mal, ele está perdido é um ser bruto e ignorante.

            - Oh! Pobre coitado!

            O pássaro sobre a gaiola deu um estrídulo alto, voou entorno da gaiola e pousou do outro lado. Foi com um tanto de esforço, que ainda bicudo pegou um pouco de alpiste e comentou:

-        Ou vocês são loucos ou estúpidos demais para não perceber onde vivem.
-        Acho que é até melhor assim, porque caso soubessem que suas vidas é um emprego mal pago para falsos deuses, com certeza morreriam de tédio.

Foi então que voou para longe.

            O menino de bico aberto e falou para seus pais:

            - Como é que pode?

            - A ignorância, disse a mamãe extremamente carinhosa, é o grande mal, esse ser que ninguém sabe de onde veio é apenas mais um invasor de tantos que já recebemos, não teve a oportunidade de ser agraciado pelo bem, não possui conforto algum em sua pobre existência e vive do medo.

            - Por isso aquele discurso grosseiro, ofensivo. Continuou calmo e seguro o pai.

-        É um ser infeliz que possui rancor em seu coração e não consegue entender a dádiva dos deuses, mal alimentam-se, pulam, saltam, grasnam, piam em galhos e jamais em poleiros.
-         
E o velho de poucas alturas dizia:

-        Não dá para acreditar, mas as suas casas são ao ar livre, fazem ninhos com coisas e restos,  não conhecem o conforto do lar.

            - E mais que tudo estão perdidos, correm riscos de vida diários, muitos morrem à flor da idade porque são vítimas de outros seres de outras espécies.

            - São incapazes de aceitar suas próprias vidas, por isso aparecem vez por outra aqui para desembrulhar seus ressentimentos.

            - E daí que somos privilegiados, e daí? E daí que os deuses cuidam de nós e se contentam com o nosso canto? Não pensam eles que também isso é um sacrifício?

-        Nós vivemos na mansão das certezas, temos todas as garantias, somos amados e fazemos nossa vida amável.

-        E o amor não é tudo?

            O menino ficou pensando nos perigos do mundo, pensou no que poderia acontecer àquele pássaro tão parecido com ele, e tão estranho. Esteve a ponto de se comover, mas somente saiu de sua boca algo como: pobre, como é infeliz!

            O pai olhou ternamente para o filho, a mãe o acarinhou com o bico:

            - Nem todos são os escolhidos, e nada podemos fazer senão oferecer nosso alimento e desejar que tudo corra bem a quem nos procura, mesmo que sejam cruéis, e fora de senso.

            - Verdade, disse o menino pássaro.

            E o bom e sempre bondoso pai aproximou-se suspirando:

- Podemos pelo menos cantar, a única oração possível, quem sabe possam ouvir e acalmar suas almas, é isso.

            O menino entrou na tigela de água e banhou-se alegremente, secou suas penas até ficarem avolumadas, alimentou-se e passou aquela tarde saltando feliz de um poleiro limpo a outro, fazendo manobras radicais, e agora já estava muito bem treinado e não caía mais.

-        Mãe, o que é o mundo?

-        O mundo querido é essa gaiola dourada por onde somos servidos por deuses amorosos que nos cuidam, fora daqui há a  imensa prisão onde estão dispersos os infiéis, seres perdidos na grande gaiola do indizível.

-        Não tenho amigos.

-        Como não? E nós, o que somos?

            E era noite e o menino adormeceu agradecendo sua vida, olhando as estrelas sabendo do bem, da presença de deuses que os alimentam.

A grande Gaia protetora carregada de suas verdades.

Sabia do mundo pelas frestas, a vida do mundo terrível, selvagem que jamais poderia compreender.
O grande voo terrível e impensável nas profundezas de nuvens, de céu sem fim daquela prisão que seria a sua exaustão e morte, percorrer o desconhecido e perigoso, a gaiola cuidada o mantinha tranquilo a sentir que o distante era o monstro que devorava as criaturas. Era simplesmente. Absolutamente. Completamente inadmissível.
E o mundo era lindo através das colunas douradas, de puro aço de sua casa.

Mas um dia a casa caiu, a janela se abriu, a comida sumiu e ninguém riu, nem deu um piu.
Ele se levantou alquebrado, desafortundado, desavisado e desenrolado e partiu.
Encheu o saco aquele canto de recanto de santo. Deu nas asas, deu no pé, esticou, se mandou, ergueu as penas, curvou a nuvem, desenhou o céu de sua vida e se transformou no pássaro brilhante que sempre fora, mas que jamais alguém o dissera.

-        Voltou?

-        Se aquietou?

-        Calou?

-        Se quebrou?

-        Dançou?

Nada disso, chispou, passou o machambombo no algodão, escorreu no ar, brincou de felicidade e encantou tantas asas com seu trinado enlouquecido de paixão que amou, e agora tem filhotes divertidos que estão treinando desparecer desse mundo para outro.

-        Ele vai deixar os filhos criarem asas?

Pássaros de grandes alturas morrem no mofo comum de mansões, sobradinhos, tijolinhos, chalezinhos, apartamentos apertados de suas pequenas vontades de gaiolas.

Gaia era maior que todas as ondas de seus arames de gaiola.

Ele é fora da casinha, ao vento, ao sol e à chuva.

Gaia, a terra das vontades dormia nas ondulações das incertezas. Gaia de sonoras terras, feitas de promessa e duvidas, entre vida e morte, não era a gaiola.

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