Não é calor, é a coisa da cidade.

Não é calor, é a coisa da cidade
Pedro Moreira Nt

Não é calor, é a coisa da cidade. Acho que é um arranjo entre políticos que querem se manter no esquema. Eles trazem esse frio, esse bafo úmido de gelo para o meu descanso. Não, é muita teoria de conspiração. Burrice tem outro nome, viver aqui. Viver na certeza que amanhã todo mundo vai estar de cara amarrada pensando em enganar alguém. Eles se enganam.
Ontem foi calor do cão, e em alguns dias o satã vai parar de ameaçar e vai atuar. Mas é assim, um dia de desgosto com outro pior.
Naquele dia foi horrível, ganhei a causa de meus interesses com a parceira. Não chamo de a amada porque não amo mesmo. Nunca amei e acho que não tenho vocação para perder meu tempo à toa.
Estava frio, e era verão, assim mesmo, entre cobertores, feito sanduíche, sentia aquele frio na espinha. Havia esquecido algo. 
Todo mundo me chama de cafajeste só porque sou filho da puta com os meus amigos e empregados. Com a família não, nunca, que nem falo com eles. 
Um dia minha mãe, antes de morrer - por alguns dias antes, aliás - me telefonou me cobrando de não ir visitá-la. Não é um absurdo!
Já fiz muito por ter de aturá-la como mãe, para mim sempre passou além de uma vaga lembrança que me aporrinhava diariamente. Depois disso, frente ao caixão espirrei umas lágrimas, porque não sou burro, sempre levo um spray avanço comigo para essas horas. De fato, deu certo, mas não adiantou muito quando meu irmão, um lazarento me perguntou se tinha para ele também. Ele achou que eu fumava algum tipo de bagulho, coisa que nunca fiz, sou um homem sensato, sensato demais da conta. 
Falei que tinha até a pouco, mas que a merda tinha acabado. Não é que ficou chateado. 
Sincero que sou, ele sabe que já ficou chateado algumas vezes, principalmente quando foi morar na casa de uma das minhas tias. Eu não lembro o nome porque não fui treinado a guardar nomes de pessoas, ainda mais do meu pleno desafeto. Era uma dessas que chorava para ganhar algo a mais, que alguém pagasse um bem ou seja lá o que for, uma sucata usada qualquer para dizer que apelou, enganou alguém. 
Enfim, Janinha, a do escritório, me telefonou. Ela é uma secretária que faz a vez de advogada.




Tive de atender porque, apesar de não ser noite, e de eu ter fugido daquele inferno, sabendo que poderia ser algo que não lembrei. Atendi, sabia quem estava do outro lado. O número aparece, o sinal avisa que é de lá, então, com muito saco, atendi ainda entre estrelas e lua.

- Hum!
(odeio falar alô porque parece algo íntimo, como se tivesse obrigação de saudar)
- Bebeu e foi para cama?
-Não, não foi nada disso. Começou tarde esse sono. Na verdade, sinceramente, estava dormindo o tempo todo. Daí, deu sono.
- Você não tem jeito. Por que não diz: esqueci.
- Esqueci.
- Não vale copiar.
- Não estou copiando, estou dizendo a verdade, deu sono.
- Tá e o que achou da proposta?
- Qual?
- Está dormindo?
- Ainda não.
- Mas meu Deus, o projeto.
- Ah!
- Não quer fazer mais?
- Até...quero.
- Como até. A gente marcou reunião, as pessoas ficaram esperando, e você diz que até.
- Até então, beijos.
(tum-tum-tum)
- Alô! Alô!
(plact.)

Depois desse desligamento natural pensei muito a respeito de sexo. Não sei, foi uma novidade, eu mesmo não penso nisso faz tempo  que acho nada mais que uma grandiosa e estúpida perda de tempo enfiar, meter, fazer aquelas bobagens e fingir que é bom, que é legal, que estamos juntos e felizes. Quero saber quem é feliz com quem, se souber que me empreste para eu dar uma volta.
Não sou machista porque detesto homens, quando me olho no espelho tenho vergonha, e mulher, nem amizade porque estou de saco cheio de qualquer possibilidade, de alguma vantagem e ter de dizer que é bonita, que é legal, que é inteligente, que o cabeleireiro atendeu ao corpo, que tem alma. Olha, não sei mentir. Seu eu vejo o inferno na minha frente não digo: como é bom o paraíso.
Essa cidade foi escaldada, algum diabo jogou uma chaleira de água quente nesse buraco. Depois de tanto calor parece que qualquer vento de bosta vira essa geladeira.
Como disse a minha esposa: hoje você chegou à sua temperatura.
O que ela quiz dizer com isso?
Que eu sou frio?
Absurdo, morro de frio. A ironia não pegou porque o frio me deixa duro. No duro! Ué! Duro, duro de frio.

Grande infelicidade o sexo duro é ruim até para fazer xixi e a gente tem que mostrar o treco, esse apêndice. Não tem como esconder.
- Já levantou?
- Não, estou dormindo.
Conviver com Martina é algo que se tem de realizar com um pouco de grosseria.
Eu fui sempre educado, sempre digo, por favor, meu bem, vá para a puta que te pariu que não vou trepar, estou cansado, tenho dor de cabeça, estou naquele dias trágicos, sabe como é, final de mês e um monte de gente pedindo salário. Não dá.
Eu tento ser bom:
- Amor, não quer o divórcio, eu sou meio estranho, sabe.
- Não diga!
Fico apavorado em saber que o tempo já andou quase trinta de simplória e infeliz convivência. A gente se acostuma ou não, mas a gente persiste por certa afinidade. Já fiz isso antes, isso de casar. Ela é legal.
Saio, vou à padaria e como lá, volto ao meio dia e como no restaurante perto, à noite vou jantar em outro restaurante ou faço um lanche, em casa encho a cara, tomo café, tomo coalhada - o leite estraga de um dia para o outro, mesmo esses que tem formol -, um pão com mofo, tipo LSD grátis, engulo umas aspirinas ou vitaminas, essas coisas estúpidas e vou para a cama de banho tomado, dente escovado, cabelo penteado e pijama.
Só porque gosto de uma literatura ligeira não quer dizer que não leio. Já li aqueles clássicos quase todos, alguns entediantes como um convite de casamento. Não há coisa pior.
Agora estou amarrado num treco que demora girar uma página, na verdade tenho vontade de rasgar e pôr fogo, mas sigo, tenho pena e vou corroendo como uma traça nojenta aquelas palavras que querem me dar algum sentido, alguma coisa para não pegar alzheimer que é uma doença de esquecimento, de tergiversar sobre qualquer assunto em pleno abandono mental.
Enfim me dirijo ao antro.
Chego ao escritório em 15 minutos no máximo. O motorista, que esqueço o nome me deixa na frente, detesto dar voltas.
Entro no elevador e já ouço do mezanino algo como: até que enfim!
É um gosto de giz na boca que faz babar quando vejo essa pessoa. Seu fosse um incendiário eu a levaria para churrascaria mais suja e a jogava num daqueles fornos, naquelas grelhas para ver queimar. Mas, é isso. Preciso dela, e ela é louco. Gente normal não dá, vão querer empregar o pai, vão querer me visitar, vão me dar presente para uma indicação, pedir percentagem.
A Luiza é diferente, ela rouba.
Prefiro uma ladra descarada dessas do que me submeter a um falso-honesto, que honestamente é um cancro.
Ele é gente boa, limpa o jardim, cata bosta de cachorro, varre a rua, conversa com vizinhos, já imaginou. O meu vizinho é tão odioso que resolveu plantar cactos no passeio, essa calçada de grama para que ninguém estacionasse frente a sua pocilga, para mi é uma sorte ter um maldito desses porque quando precisar de algo sei que nunca, nunca vai me procurar. 
Doce Luiza. Ela fala rápido, mas leve, ela é tensa, porém delicada, ela metida, porém respeita, ela é tudo, menos dissimulada. 
Entro na sala, aquele povo me olhando como condenados. Os clientes. Eles querem vender microondas, querem fazer varejo e fazem pose de institucional. 
- Vamos lá, qual o plano que não tenho tempo.
Luiza já enfiou a tela na minha frente. 
Li aquela nojeira televisiva e disse: a campanha sai bem em 30%?
Maior reviravolta de olhos.
- Não estão apostando? Não querem tirar o produto do congelador? Não querem ganhar o mercado ou querem apenas mostrar que são empresas importantes.
Falava assim porque sabia quem eram, sabia que eram os entulhos de uma house gosmenta que me olhavam na cara com cara de asno.

Luiza, veja só:
- Calma, calma. O pessoal ficou para te aguardar.
Um deles me perguntou, o que tem em mente?
- Tenho verdades. Se quer fazer algo para desenterrar o mau, tem de pôr o brilho na cara e no ouvido dos possíveis interessados. Cadê as mídias sociais, onde estão os outs, onde ficam os avisos no rádio, onde está a porra da gráfica nisso?
Luiza, como sempre.
- Bem, a gente fez um levantamento que passa da cota de veiculação e não temos carta para fechar mais que três espaços.
- Ok, então é varejo. E se é varejo, o que estou fazendo aqui, pensei que a gente ia tratar de negócio grande.
- Mas é sim, é grande.
- Olha, a gente veio porque temos confiança que a agência tem como operar.
- Então vamos avaliar. Nós cobraremos menos 16,5 se nos derem 5% da venda. O resto eu implanto.
Ninguém sabe, mas a percentagem é alta.
Vi telefone celular voando, eles telefonaram para as chefias, e Luiza atendeu dois.
- Vão investir para o rádio também e gráfica. 
- Passou a alíquota? 
- Passei.
- Telefone para o jardineiro - jardineiro é o nome do contato na mídia TV - e vê se avança nas telenovelas.
Luiza me levou para casa. Paramos naquele boteco do pessoal de arte. É bem enfadonho, mas deu para tomar uma água limpa, café meio pronto, e um ovo com pão de batata - que não tem nem trigo e menos batata mas muita maizena que chamam de maionese. 
Entramos em casa, ela tirou a roupa e me deu um beijo.
Aí sim, ela mudou de nome.
- Martina, vamos para o banho juntos hoje.
- Por quê?
- Amanhã é sábado, quero você limpa.
- Vai à merda.
- Vamos.
Esse é meu cotidiano, e é um saco.


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