Roubaram o meu tempo

Roubaram o meu tempo
Pedro Moreira Nt

Mataram meu tempo, não fui eu, estava no passatempo; algo que se ganha tempo. E não foi o big-ben que querem carregar no pulso, não foram os passos do soldado frente a evidência do crime e da morte certa,  não foi a corrupção, a vizinha que tem o hábito de soltar o cão para cavoucar o quintal, e também, juro, não foi.
Levaram meu tempo para a escola. Levaram amarrado. Depositaram no trabalho, depois disso, quando não havia mais tempo para dizer parem, calem a boca, deixa o tempo passar, deixe-o em paz, enfiaram-no em uma mala e o puseram em um passaporte sujo, e o empurraram pelo país. Eu tentei falar, tentei gritar na cara dos uniformizados risonhos. Disse-lhes qualquer coisa que vagou no tempo perdido. Eles, esses de sempre que andam com cara de eu posso você não, tipo temperamental, esses todos me disseram: Não entendo. Não posso atender o seu pedido, procure na outra secção se tiver tempo. Haveria um tempinho para me ouvir? Não tenho tempo. E foi a se corroer dentro daquela pocilga em viagem. Uma viagem que parte de lugar algum para nenhum lugar. 

E o tempo passou, engomou, secou no varal, e fiquei com o tempo curto, esmagado nos ossos de meus pensamentos, esculhambado e sem mais o que fazer perdendo de mim a ânsia de vômito. A derreter como a calota polar, a ruir no simulacro da durabilidade, do incansável, da honra, da verdade. Derretendo. 

Aquela sensação estúpida, quando se engole arame farpado, e o barulho que faz nos dentes da de existência. Desci de um trem imaginário, de um avião que pousa tranquilo em uma cidade que voa. E me joguei no ônibus de partida, no bonde errante, dirigi noites afins de encontrar o miserável. O conforto ecológico dos poucos estava estampado em todos os cantos e recantos e atrás das mesas, cuspideira dos terceirizados, dos terceiros conformados, e os  afivelados no banco do passageiro em total passagem temporária. Morrem tão vivos no desconhecido passado que anda pela casa, faz estalido mesmo no tapete empoeirada do presente. Aquele termo: houvera tido o golpe na cara, - sangraria. Mas não houve, - se diz. E ainda, se houvesse um tapa ao menos, - um único que pudesse despertar. Há tempo que nada disso limpa o horizonte das tardes. O anoitecer sem nuvens ácidas e com estrelas ferventes, luminosas.
Contaram-me, por fim, que o tempo, o meu tempo estava a caminho de se afogar ou chegaria em outro país a tempo de eu voltar a mim, (se tiver como chegar lá), alcançar o navio, o barco, e atravessar as roletas mortas da burocracia e me jogar no corredor de bagagem e ajuntar o que me falta e me faltará quando estiver em terra estranha.
Toda conhecida no caminhar que faz encontros, e uma porta se abre por abrir, sem quem diga: Ah, é você! 
Devolvam o tempo, não direi. Assassinos da existência amada, entreguem-me o que me levaram. Nada a fazer no temporal do anonimato, da figuração, da estranheza, do vazio, do vácuo que retira o grito e asfixia a vontade. 
E os passos doces que foram, - sem deixar marcas. 
Os dias mortos antes do nascer do sol, chuvas secas, neblinas e orvalhos murchos, e a maior força de um raio que podia ser brilhante é uma vela que derrete nas mãos, na caverna do inóspito. E soa a trovoada como o estampido de um tiro, porém, frágil, de folhas secas, sem força e alma. 
Rezam, oram, meditam, pedem a bondade frente aos muros erguidos contra a corrente insana dos famintos que querem saciar, tapar o buraco de suas vidas sem tempo. E nada, nem mesmo a luta para o último pão bolorento os fará dignos, os fará humanos ao rastejarem por botões para suas roupas, suas ridículas casacas, nem o momento do punhal em suas faces os fará abrir o zíper de suas peles gordurentas à janela do tempo. 
E morrem de mãos dadas, choro de auto-piedade, derrotados por não se importarem com o que passa, o tempo, aquele que esvazia e enche o movimento dos vivos.
E ficarei com meu tempo que conseguiu escapar do sequestro. Ficarei com ele por me levar a mim mesmo, além de tudo, distante e perto. O meu tempo que despejará o que sou nos lugares. E haverá encantamento, aventuras, surpresas, e se poderá dizer, e, alguém de um outro lado de mim, alguém imerso no oceano das possibilidades, entende. E pode rir, chorar, esquecer tudo e voltar a ter lembranças.
Flutuando descansado nos perigos mundanos, escapando das farpas da ignorância, tropeçando nos meus erros, na minha falta, e novamente entregue ao vento, ao uivo trágico do tempo.
Não sofrerei por expectativas, não arrastarei infortúnios como memória, nem prazeres que morrem no gosto, jamais abraçarei e beijarei o cruel, o comum da ordem porque estarei tão desapegado que saberei o tempo de ficar e de seguir. E os meus olhos, mesmo embaçados, cegos nas crenças vãs se abrirão, ouvirei as canções de dor e as de felicidade. 
Em certo tempo estarei comigo e percorrerei um universo instável, e ele todo confluente a mim e eu a ele. O domínio das incertezas, as abruptas, aquelas que dilaceram a carne e faz morrer o silencio com suas dúvidas. 
Morreu o tempo para mim naquele instante. Mas eu o persegui desesperadamente e o alcancei antes que o estrangulassem e o jogassem no depósito do eterno tempo. 
Solto em sua roupa de vida, flui feito um rio de transparência e delicadeza. O tempo é frágil, amoroso, sincero e bom. Abri o espaço para que nunca mais pudesse perde-lo de vista. Eu o tenho agora e ele a mim. 
Nesse momento ri. É todo surpreendente. Aqui o tempo corre, está livre por todos os lados, dança, canta e pode até ir ao teatro, nu e frio, com palavras renascidas, e outras vezes (que o tempo não urge), descansa ao tempo das esperanças de um dia voltar ao país que o tempo roubaram.

Em tempo, como um aviso, sou eu mesmo retomado de mim.

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