Carmim



Estava no banho. Não, era o telefone.
    Foi um acaso. Não tive tempo, a correria, sabe, as coisas, tive que tirar o pó. Não pude, sinto.
    Como assim?
    Mas não fiz nada. Só porque disse aquelas coisas. Não foi nada, o gerente não viu, não ouviu.
    Que coisa moralista.
    Não, não quiz dizer isso, ao contrário. Eu falei. Uma atitude de certeza, sabe. Errar não é tudo. Tá.
    Tá, tá, vá. Vá de uma vez. Pegue suas amarrações, sua mandinga que me faz idiota. Sai. Dá a sua volta, fume um cigarrinho, pense diferente se possível, dance debaixo da árvore, deixa o vento, que se lasque o dia.
    Para quê, me diga, tudo isso?
    Cai o sabonete.
    Sabe bem que durmo sem você ao meu lado. Vai e volta, vai e fica, fica e não vai.
    Mentira. Sabe melhor que eu.
    Fica. Fica de uma vez, se enrola no cobertor, deite sua cabeça em meu ombro, não me importe que ronque que faça sons absurdos, que assobie e chame o seu pai, sua mãe e outras pessoas que acha carmim.
    Eles não são.
    Pega o amaciante de espinhas, o xampu.
    Logo ganham um tempo, fazem de conta. Pedem licença como fosse novidade, estivessem estreando a bondade, - falam baixo com seriedade como mestre Zen -, sei lá. 
    Vão às cordas. À gravata, que se aperte; que se enforquem.
    Podia ter um muro e eu o gatilho.
    Carmim na rosa branca, na parede caiada dos dias que saímos em marcha. À luta.
    Lembra?
    De quê?
    A gente era amigo, a gente era amor, a gente era gente.         Lembra.
    Diante do salário, otário; no corredor da morte do prontuário e, da sempre, sempre maldita intervenção: Calma, não é assim.
    Não é assim o carmim.
    Os meus passos solitários, essa é a merda. Não disse isso no sentido de mau-cheiro, mal-terror, de entendimento doido, não. 
    Olha à janela com medo de que o vizinho entrasse de olhos para dentro da banheira.
    Não, não, está enganada.
    Não foi isso. Nada disso, apenas estava tentando me expressar com força de sentido, já que, sabe também que o significado morreu na rosa informe. Informe que morreu e ninguém ainda deixou de tirar dela o seu último perfume, a última pétala manchada por ser uma coisa. Nada disso. Falo de outra questão, por isso usei coisa.
    A deformação do dia que o sol trás enganando a sombra.
    Uma maneira. Uma maneira de querer. Ao menos.
    Sei, sei. Então tá. Tá, passo lá, digo que a conta é tua, que me deve então.
    Pare, eu tento falar e você ouve ao contrário.
    É uma reação. Por que não há diálogo?
    Qual relação?
    Você sabe, isso porque não reage.
    Não vê que tudo passa, tudo fica para depois?
    Por quê? Por causa das promessas, e vontades tanto preteridas em nome deles.
    Sim, para eles. Eu acho que podíamos pensar diferente.
    O que acha não interessa, o achar é roubar porque se busca achar, um acaso esperado, oportunidade ora.
    Rompe a tampa, e a água escorre.
    A cor de céu comunista, a cor que invade a pele, faz sua vergonha, a guerra carmim.
    Não vê que passa da hora?
    Entra na conversa, transgride os sentidos das coisas apenas para se divertir.
    Como? Repita.
    Intransigente é você. Pintou a boca de novo, eu vi.
    Cale a boca, eu já disse que isso nada tem a ver com o que está na sua cara faz tempo.
    O quê? Eu? É louca querida, louca com essa bandeira de rosa cáustica a pular na rua com o salto de quem está por cima.
    O quê? Uma ova. Eu tive lá. Falei de você, e, bem, ninguém acreditou.
    Pode ficar vermelha quanto quiser, sua sandália está enlameada, minha cara.
    Vermelhinha, púrpura, manhã rosada, doce existir.
    Falei, cara.
    Ainda molhado, ainda ensaboado até os cotovelos sopra o espelho.
    Caríssima.
    Nada disso. Não tem a ver com preço de mercadoria.
Jamais.
    A face aparece.
    Barata. Mesmo que barata, isso não. A cor vendida. Escuta, vê se entende.
    Não é barata.
    Como? 
    Vermelho, rubro.
    Sou eu.
    Eu lhe digo.
    Baratinha. 
    Repita garotinha. Repita que eu te ponho a cor na cara que te falta.
    Eu, desgraçado? Como é?
    Sei, sei. Entendo. Ele disse. Hum. Acreditou. Estou imaginando. Mas me conte isso de uma vez. Não se ponha abaixo do tapete.
    Porque não há espaço, só isso.
    Eu falei sim. Barata.
    Sei que barata quer dizer vermelho. A prática é o barômetro.     Posso dizer?
    Não é barão nenhum. Eu.
    Está procurando rugas, minha cara. Procurando temperamento, procurando qualquer coisa que lhe falte.
    Não falei isso, ouve errado. Está bem.
    Ocha! Não fale assim.
    Explico.
    Escova os dentes. Enxágua. Escova os dentes. Enxágua.
    Sim, ocha quer dizer tudo bem, é Guarani.
    Entende diferente.
    Põe a roupa.
    A que horas?
    Cai o sol.
    Pôr-do-sol, vermelhidão.
    Fim do dia.
    Demora com os botões da camisa.
    Devia ser zíper.
    Eu disse, rápido.
    Gracinha, sombras da noite, fim de tarde, luz. Fogos no horizonte, a música. Levante.
    Quando? Hoje?
    Através das seis. No horário que termina o tempo do dia e começa a noite. 
    Põe os sapatos.
    Nunca ouvi isso.
    Você exagera.
    É apenas um encontro. Ninguém vai se mover.
    Barata tonta é a tua mãe. Desculpa, desculpa, sei que é órfã.     Compreendo bem, o fim de tarde, o pôr-do-sol, mesmo que chova, no horário.
    No tempo é melhor.
    Um encontro para a vida inteira.
    Há de ser assim: no logos. Passagem das horas, no intervalo do tempo, no beijo.
    No arame, no anel.
    No movimento constante.
    Engraçada.
    Não disse desgraçada; disse en-gra-çada.
    Também tenho com saudades.
    Fica comigo.
    Fica mesmo, quando há claridade fica como a tua boca, como a tua alma, viva, vermelha, te amo, Carmim.
    Eu disse, Carmim.
    Também te amo.
    Não me apresse, estou indo.
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Tigre


Dedicado a Charles, o editor do Caderno Especial. Um cara sensacional que inovou o jornalismo com abertura de múltiplas atenções do público leitor. 
Graças a essa pessoa eu pude continuar a pensar que a comunicação através da literatura tem seu espaço no universo contemporâneo, que há poesia na vida, divertimento, estranhamento. São muitos contos, nano-contos, contos extremos, curtos e finalistas. 

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