Amar, inclusive

Amar, inclusive*

Pedro Moreira Nt



Corre o mercado empinando o carrinho para o primeiro dia de férias, faz as mais perigosas curvas e desliza colhendo rapidamente todo o tipo de mantimento. Descendo os canais sujos, viaja por entre gôndolas lotadas, desvia de velhas e obesas desleixadas, crianças choronas, pais irritados em filas intermináveis, desafiando o mundo, veloz, ofegante.
Cresce a impaciência a cada estreita encruzilhada, quando empurra algum comboio estacionando, quando quer alcançar um produto que se escassa ou , pior que tudo, devolve latas amassadas, legume velho, produto com a data vencida e outros empecilhos que só a sujeira é capaz de fazer.
Quando isso acontece, xinga, esbofeteia no ar a cara imaginária do gerente, o dono, o governo e seus ministérios com aquela calma de quem está louco da cara e faz de conta que canta.
A velocidade aumenta, as curvas são chocantes, apertadas, desvia de alguns fiscais, pula à frente do remarcador de códigos de barra, voa para o setor de bebidas, passa com a cara fechada frete a algum conhecido, acena, tudo rápido, ligeiro, sem fronteiras, nem pontes aéreas, tudo para entrar em férias e fugir do canibalismo.
Já está esperto com o carrinho, conhece as curvas, os contornos mais difíceis da pista do supermercado, faz surf nas ondas de formigas humanas num Sábado enfadonho, sobe nas ondas, faz os giros, equilibra-se com um pé só, vai para a crista e os lixos vão tomando conta, poluindo o mar a cada instante que o tempo devora, passa pela primeira encruzilhada de frios , vai para o declive do setor de roupas, tromba numa arara de jeans, entra no túnel de roupas íntimas, destróis as ofertas de sutiãs, tropeça numa manequim e é arrastado para dentro da acaçapa, jogado no provador feminino e ali a encontra, ao acaso, puro incidente. Inteira, pronta para multá-lo por excesso de velocidade, por descontrole, por imperícia, nua, a cara apavorada com o grito saindo pelos olhos e boca sem nenhuma palavra, ele estendido no chão, o carrinho fechando a saída da porta de pano.
-                 Seu! Seu grande miserável!
 São as palavras mais doces que ele poderia ouvir depois de tudo. Pisa no peitoral com aquela força filha do medo e do horror e vai descendo com a vontade de arrancar-lhe os olhos, torcer o pescoço. Nariz a nariz, boca a boca, testa a testa e uma sensação escrupulosa vem à mente: Vão pensar que ele estava aqui faz tempo! Vão pensar!
Esqueceu que ninguém pensa no supermercado senão dentro de provadores de roupas.
Uma coisa eternamente fora do comum atuou, o que a fez mudar de intenção e não de propósito. Beijou a cara do cara, foi rasgando a camisa, desaparafusando a calça, desapertando o calçado, a meia, a cueca deixando-o em pêlo.
Duro, quieto, angustiado, os olhos inertes, deixou-se levar com a vergonha estampada: Ela vai me assassinar! Vai me pôr a nu frente à balconista! Vão gritar: tarado! Mulheres com carrinhos e bolsas vão retirar a minha pele e vender para algum colecionador no Japão a preço de papel higiênico.
Contra a parede de tecido, olhos baixos, boca aberta com o engasgado – desculpa, foi sem querer! -, puxado pelos lábios, por olhos glutões, pendurado nos seios e foi sendo estrangulado por abraços compridos de raiva.
Disse enfim: Estou saindo de férias, fiz uma curva na ginkane errada, vim para o box, entende?
Espremidos, um contra o outro, carne aquecida ao ponto, transpiravam os mais infelizes segredos. Ele ganiu: por favor! Sou um corredor de Sábado! Ela também: Desgraçado!
Desequilibraram, caíram ao chão ofegantes procurando uma saída. Ele tentou:
-                 O que vai fazer hoje?
-                 Idiota!
-                 Sinto muito, juro!
 Brincaram de cavalo a galope, ela acertando-lhe tapas no traseiro em meio à corrida. Cabeça a cabeça, quarto com quarto, meio corpo adiante, ultrapassam, retornam, focinho com focinho, patas dianteiras em revés e cruzam o disco final.
A dama de espadas presa num compartimento com o valete de ouros. Tudo numa situação impossível. Como que desejando acabar com a gangorra no parque, quebrar o dique onde o monjolo, no seu bater constante afinava a farinha, aumentando a força da torrente, tentou realizar uma ponte entre a invasão do sujeito e sua presença, o medo de serem pegos naquela situação, a insegurança do lugar: como vesti-lo? O que estou fazendo? Estava exausta e a sensação de culpa aumentara. Ela rapidamente sai empurrando o carrinho, junto à cortina diz algo como que nada:
-                 Eu também tenho pressa de sair daqui! Fechou a porta de pano.
 -                 O carrinho é meu!
-                 Você está nu.
-                 É para o final de semana na praia!
-                 Eu te aguardo no estacionamento.
 Veste-se, a camisa rasgada desfolhada no corpo. Parte desequilibrado para a sessão de roupas masculinas, esquece o que ia fazer. Vai em direção à confusão geral de anúncios e reclamações, passa pelos caixas, adianta-se para o portão de saída. Pede licença para um homem bronco e cansado, é empurrado, cai, rola para a direita, uma criança grita. Tropeça no degrau que dá para o estacionamento, bate num carro, o motorista pára, faz um sinal obsceno. A praia fica depois do engarrafamento.
Alguém o segura pela camisa esfarrapada.
 -                 Saiu com vida?
-                 Eu queria dizer ...
-                 Não diga nada, onde está seu carro?
 Entram. Partem lentamente com duas ou três buzinadas. Ela sorri, ele também.
Ninguém vai acreditar.


*Parte de "Vestígio da Personagem"
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