O ato

O ato
Pedro Moreira Nt


Entrou em cena com aquelas caricaturas. Se debateu frente ao público em busca de alguma verdade.
Na platéia estava toda a animação. O desenho vivia em suas veias. E o público era o reflexo da última propaganda sobre heróis, mas nenhum deles venceu Aquiles até hoje. 
Dava certo. Quanto mais superficial, mais era profundo porque a superficialidade acredita que o supérfluo é um presente dos deuses. Então, aplaudiam. E riam também. 
Eram sacos de risadas programadas para cada cena, eram aplausos e efeitos especiais desses que anunciam que o alarme do carro está ligado. A verdade. Quantas vezes se mergulhou na impureza em busca da claridade? Quantas vezes saíram dali crentes de que haviam conseguido tocar a raiz das águas. 
Mimos, faziam aqueles movimentos de surpresa. 
Na saída do espetáculo um dos personagens pagos da direção olhou quase nos olhos de outro personagem e lhe disse: eu-te-amo. A voz saiu afônica porque o equipamento humano ficara muito tempo desligado e a caixa acústica estava trincada, como se diz. O útil não respondeu para não perder o cachê das representações de brinquedos da indústria de heróis.
Às vezes em meio à multidão de bonecos, aliás muito bem treinados, saía um som delicado vindo de uma peneira presa à garganta.
- Ai, o amor. O amor é tão útil.
Mas, como acontece no teatro, alguns críticos disseram que a obra se empunhava de um não sei quê de cinismo. Pronto, o que faltava se deu. Pancadaria. 
- Ele quis se aprofundar, está na cara.
- Absurdo, ele foi uma máquina perfeita, isso é simplesmente ridículo.
- Sua coisa abominável. Naquela época dizer isso, uma ofensa sem precedentes.
Começaram a tirar a cabeça de um e de outro, procuravam disfarçar que não eram nada humanos. Naquele tempo havia críticas artísticas com programações definidas e os atores recebiam uma caixa de petróleo da companhia de gás que os mantinha vivos.
- Vou acabar com o seu patrocínio.
- Ganhará um incentivo na cara.
E era terrível porque os amadores, eram pessoas sem sindicato, mas tinham direito a realizar espetáculos e eventos sociais com verbas profissionais, se revoltaram dizendo que não precisavam de crítica, nem da opinião de qualquer um, eles odiavam os autores porque acreditavam que deviam colher suas obras do jardim das idéias e pensamentos alheios sem garantir um centavo. 
A guerra estava feita. Mas a sociedade não era de iguais, apesar de muita gente andar na rua como se fossem deuses, todo mundo sabia que era uma barata imitação. Aliás o texto sagrado da transformação social era um livro de Kafka.
Os Incrustados, eram seres que tinham internamente uma humanidade individual com língua e cultura próprias, não se manifestavam porque não sabiam do que se tratava, pretendiam voltar para a fábrica de onde vieram. Algo assim, quase que uma memória de algo vivo por si mesmo - e eles eram quase vivos por si mesmos. Uma forma, uma teleologia que os levaria em um tipo determinado de lugar em cuja função estava prevista. 
Os antigos diziam que eles teriam algum tipo de extinto, uma forma mágica de querer ser, mas que os levava de volta à árvore, - na verdade, um setor de montagem e remontagem e reforma. As reformas eram interessantes porque ajudava nas vendas, eram chamadas recall da moda. O jornalismo pago anunciava: "Se você está usado, perdeu a utilidade e não pode servir mais a ninguém, nós te ajudamos, encontramos para você um mestre, um deus, alguém para que possa realmente se submeter. Venha para a Rua do Quiosque e troque a sua embalagem moral". Embalagem moral era um tipo de ética direcionada, uma coisa, se a quase pessoa tivesse um emblema, uma marca, seria facilmente reconhecida e poderia fazer as mudanças que considerasse necessárias para viver melhor em sociedade. Os diferentes, esses eram um perigo, deviam morar nas periferias que jamais poderia ter um teatro com tal superficialidade, - eles não entenderiam, acabariam, como diriam, por se aprofundar e ter idéias próprias. 
A cidade então se organizou em busca de valorizar os líderes - as pessoas que tinham competências para tratar com esses objetos, (eram amáveis networks que buscavam manter a ordem). Chamavam-se verdadeiros caricatos, o que dava a entender que eram, por assim dizer, senhores dos desvalidos que necessitavam do tal recall da moda. Eles aplicavam a eles novas programações com funções persistentes. 
Para andar nas ruas, os mais adiantados sabiam que deviam se manter cidadânicos - uma cidadania estrutural que vinha dos de cima para os debaixo -, conhecer as regras, cumprir as leis e se realizarem em nome de um dever - como antigos deveres de casa que obrigava as crianças a copiarem as respostas para o bem de Boletim, o chefe. Para andar nas ruas deviam anunciar que eram subsumidos ao esquema, coisificados aos interesses de seus chefes e donos de empresa, aliás deviam ser colaboradores e ajudarem os patrões inclusive aos sábados. A gente da periferia não porque eram analfabetos de superfície e ignorantes completos, eles nem tinham função.
O quase humano, (inclusive atores e críticos) deviam dizer com etiqueta: "Em nome do senhor" - não podiam dizer a denominação do grupo (era segredo) - havia muita concorrência -, e nem dizer de qual Condomínio vieram - para não complicar a vida do Síndico (um sujeito fantástico que sabia programar funções, até mesmo recall, se caso não se conseguisse a tempo - antes da moda passar -, realizar as operações de mudança Behavior (comportamento correto, eficaz e político), o que causaria danos ao Sindicato - grupo de Síndicos que estudavam modos de manter a ordem a qualquer preço, Em nome do senhor. E eles eram senhores, sim senhor.
Por exemplo, antes de entrar em cena o ator deveria se apresentar à platéia: Em nome do senhor, código de acesso e nome pessoal de cópia autoral: "Em nome do senhor, 46a/32-5, Luiz", eram um aplauso, e muita gente ficava de pé quando o ator conseguia dizer o algoritmo de seu Behavior.
Eram todos matematicamente corretos, abstratos e felizes - quase felizes os quase humanos.
Achavam bonito dizer: Em nome do senhor, posso passar?
Então se respondia: Em nome do senhor, pode.
Os senhores ficavam bem na fita. Todos gostavam de dizer essas palavras. 
Ao invés de estenderem as mãos, ou de entorta-las, de girarem, de as apresentarem uma de cada vez, de darem porradinhas uns nos outros, eles abriam os braços e abaixavam a cabeça - como pássaros crucificados no poleiro da salvação.
Eram lindos. Todos quase iguais. 
Quando era dia de festa? Quando o Alcaide - um Síndico com poder elevado -, apresentava uma cópia que deu certo em outra cidade. Todos amavam, era a novidade, algo original para as suas vidas repetidas.
Por isso o teatro era para todos, todos que podiam copiar os melhores heróis - em nome do senhor -, e realizar apresentações previamente improvisadas no sistema apaga-acende com plug-on, plug-out da gestalt dos objetos inteligentes (treinados) como capacitores - seres Load, carregados para ativar suas funções em perguntas/respostas com um concretismo respondente chamado "significativo" para o sistema operacional do bom Social Behavior.
O teatro, por não ser para todos, - todos mesmos - só para a superficialidade dominada, - em nome do senhor -, pode montar de uma notícia via cabo, ou bluetooth qualquer tipo de comentário  - que esteja na moda.
As mudanças são diárias com novidades para todos que podem. Veja que até "Em nome do senhor" - questão de social etiqueta - mudou até quando transportava os parágrafos anteriores (nessa cópia). Agora é abreviado com Emdos. Diz-se agora, faz alguns instantes (distantes), Emdos, posso passar? Emdos, vou ao banheiro, Emdos, você está bem, etc.
Os que não podem, os que estão à margem das denominações Emdos, esses, bem, necessitam que a máquina pare, chame os Síndicos, possibilite Incrustações, ou mudanças estruturais corpo/mente/máquina (trifásico). Como custa muito caro higienizar esses seres sujos, que ainda preferem - vê se pode -, se aprofundar em algo, - do tipo papo cabeça -, esses não entendem a superfície.  




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