Orquestra do bairro

Orquestra do bairro

Pedro Moreira Nt



Será que irritarei o jardineiro?
Estava pedindo ajuda. Somente isso.
Se colocar a um tom abaixo
a cortadeira de grama...
Pode ser que fique bom em um dueto. Não sei.
E se prender um guizo na hélice, tocará com mais evidência.
Falta acompanhamento.
Ficaria bom se a máquina de lavar estivesse batendo.
Ligarei a ventoinha da garagem.
E se o carro estiver a quatro tempos?
O efeito do liquidificador só vai bem com sucos.
Posso bater claras na batedeira. Vai ser dispendioso.
Como o avisarei que é o momento?
Bem, ainda é o primeiro ensaio.
Será que virá a semana que vem.
Espero que use o soprador de folhas.
Posso conseguir um transformador para aumentar e diminuir o ritmo.
Mas a questão é o tempo musical.
Será que estou ficando louco?
Ninguém discute sobre isso.
Terei que conversar com o vizinho.
Ele é um tipo meio corpulento, tem uma voz doce de taquara rachada.
Levo tampões de ouvido. Leio a boca, o gesto bucal.
Uso máscara de médico.
Será chato?
Vou à casa do vizinho? Isso demora.
É um absurdo não existir quem entenda o que digo.
Vou saber que se trata de um sentimento de proteção muito particular, algo que fere a mim, não a outros.
Os demais acham lindo.
Acham que se trata de um exemplo.
Trabalha, luta, transpira, ajuda, contrata um jardineiro! Isso é o sentimento de beleza que sai por tudo que é poro da gente condenada.
Ele vai me perguntar algo pessoal.
Sei que o de cima, outro vizinho, tem uma secadora que está com as roldanas rotas, tem um som trágico de um trem que quer ser ônibus.
Imagina, deixar de levar mercadoria para carregar gente.
Melhor não mexer no vespeiro sem fogo.
Vou armado? Vou engatilhado? Vou lá com um mandado extra-judicial? Vou com o Nilso, o único advogado que trata de absurdidade que eu conheço. Eu ouvi a dois dias um som magnífico de polia o chão a rasgar cerâmica
Aquilo era um troço. Uma lagarta de aço descendo uma ribanceira.
Um grito sopranino de desespero.
Como posso pôr essa nota - tão esticada.
Acho muito para apenas uma canção.
Vou telefonar para o Caginho um dos meus melhores desafinados. É gutural, simplesmente gutural.
Vai comigo. Vamos bater à porta. Ele não tem campainha, sineta, nada. Bato palmas, um aplauso.
Posso pedir para sonorizar e gravo em direto.
Isso, depois faço a partitura.
Monto tudo e levo o som na caixa e abandono lá.
Ele ouve, se irrita e desliga a trolha do cortador de grama.
Farei uma reunião na associação dos moradores.
Que fechem os clubes por uns dias,
O Padre Ernesto, gente boa, toca gaita de fole polaca.
O único mal que possui.
É imperdoável, mas é um só. Ele não tem outros.
O mal vêm dos fiéis, puxam a corda, adoram a estridência.
Problema maior é o sino. Si, ré, mi.
No domingo passado veio um e badalou aquilo fora do tempo. Era um despeito, um ódio particular que vibrou por todo o bairro.
Padre, manda equilibrar esses sinos, estão fora.
Isso mata.
O que fazer?
Posso monitorar o som através de um comunicador do segurança.
Tenho de pensar na produção.
Carregador, trator e guindaste.
Deixa ver.
O público fica onde?
Pagam na guarita?
Entram no condomínio que não possui domínio algum com o bilhete.
Isso deve dar alguma receita.
Entrada, meia entrada, idosos, crianças podem.
Horário, sábado de madrugada.
Eles dorme aos sábados, isso não é loucura?
Aproveito e mando ver o inesperado.
Tenho tudo na cabeça.
O alarme do carro que imita passarinho fica no meio da segunda parte.
Um ultraje contra a natureza.
Aí entra o grito de estrídulo de frenagem. 
Marcha ré de caminhão com som de xilofone de plástico.
Concentração. As medidas fazem as notas.
A lavadora entra abrindo o compasso, a esfregadora automática faz o contraponto com o sugador de gordura.
Daí eu vejo se os pedreiros de Joaquim virão para o sobrado e peço que preguem tudo de uma vez por todas que não aguento mais esses músicos desobedientes.
Falta de profissionalismo.
São vizinhos. Gente que faz algo como narrativa de vida com sons de equipamentos e demais tecnologias.
Espero que não tenha jogo ou que avisem com rojões essa maldita droga que percorre a vizinhança.
Esqueci dos cachorros.
Aqui há daqueles tipos que latem pulam e latem pulando e retomam a latir.
Não conheço psiquiatra para cachorro.
Podia dar uma bomba dessas, sossega leão para aquela coisa minúscula, aquele bambi selvagem.
Arde, fere a pele, corta as veias, qualquer um sente que está sangrando. Menos, claro, os donos. Olhos roxos, o bicho em fralda, cara lambida de bem-querer, e o fedor sonoro.
Se eu conseguisse que calassem durante o concerto. Podem fazer um efeito no final, tipo despedida com uivo.
Eles não uivam.
Passarinhos ficam como modelador, um ilustrativo de fundo.
Como farei isso?
Será que aviso o carteiro para não tocar a campainha antes da entrada da bomba de água?
Fácil.
Resolvi. Um roteiro para cada um deles.
Mas, e se não souberem ler?
Preciso pensar, é uma questão de urgência.
Havia uma escola aqui perto.
Mas do tipo gratuita, pública e ilimitada não tem.
É o preço, o valor da harmonia.
No dia, digo na noite eu já havia conseguido o apoio da fábrica de pedras moídas e da serraria.
Eu tinha os convites, um dinheiro para os cartazes que ficaram impecáveis.
Consegui que o de cima ligasse a sua betoneira manual na hora certa.
O irritado, o debaixo ligou o alarme dos dois carros.
O som ficou perfeito, o público se instalou próximo de casa.
Um megafone ajudou organizar.
Entraram os caminhões, todas as máquinas de lavar ao mesmo tempo, duzentos liquidadores, e fui no dimer até chegar no sino da igreja, o Ernesto, nosso padre regional tocou sua gaita, enfim o cantor entrou e fez o seu grito entrando dissonante, fora do tempo o piano engajado em alto falantes.
O trezentos cães da vila fizeram seu escândalo habitual.
Para fechar entrou sirenes de polícia.
Quando eles desceram do carro, o público se levantou e aplaudiu.
Foi incrível.
Acharam que fazia parte da orquestra do bairro.
Alguns foram presos, fui lá explicar e soltar.
Poucos processos. E agora, ouço silencio, a quietude merecedora, apenas uns pássaros irritantes rondam a casa.

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