Embalagem



Embalagem
            Pedro Moreira Nt

Ela chegou com o seu jocoso jeito de perguntar: o que estás a inventar?
Respondi-lha: augures amiga. Ninguém responde isso, mas faz de conta.
Eram olhos oleosos, densos e suspensos de interesse. Olhava algo, e também olhava os lados. Uma cinestesia estudada. Sentia na pele. Nada podia falhar. Aqueles olhos, eram aqueles olhos. Meio, a dizer, estou aqui por acaso. Súplica e condescendência. Alegria e um certo desnorteamento. 
Entra. Eu a via mais vezes no elevador. Às vezes a gente se estudava. Baixa a cabeça e seguia ao fim do poço. O térreo.
Um encanto. 
E fique à vontade, senta aí.
Mãos enroladas naquele casaquinho. Dei atenção a essa estranha entrada encabulada.
À mesa eu me remexia no que anotava. Fazia isso para disfarçar aquela dor na garganta que subia.
Escrevia enquanto conversávamos. E a vida? Disse-me sem despregar-me os olhos dos olhos e aos meus dedos tortos. E não havia como: Vai sem interesses. Na verdade, todos os interesses se apresentavam vivos à minha frente. Ela. 
Aquela carinha de vergonha planejada. Uma intenção deslocada. Parecia se esconder.
Será que está interessada? Pensei quase à palavra falada.
Contou-me de suas dificuldades com o mundo prático das novas embalagens:
- Já imaginou que para abrir a caixa de leite deve-se montar uma sala de cirurgia na cozinha e uma UTI quando tudo der errado.
- Verdade, abrir a garrafa de vinho e entalar a rolha, ter de empurrar para dentro, usar todo tipo de manobra para resolver a eficiência de uma embalagem antiga, imutável e cara. Isso acontece geralmente quando chegam os amigos.
- Como pode?
- Estava inteiramente parva com a garrafa e os saca-rolhas à mão. Tentei tudo e nada.
- Fiquei presa por uma lata de ervilhas quando terminava o rosbife! - encarou-me de sobressalto. 
- Mesmo? Que merda.
As condições eram totalmente desairosas, de perder o fôlego, eram sem ar, sem poder respirar, sem entender como se livrar do problema. 
- Pois é.
- Punha os pés pelas mãos. Punha-me frente a todos os perigos e em nada acertava.
Pensei: Ia abrir a embalagem com os pés? Isso pode acontecer. 
- É realmente terrível.
- É incrível como isso acontece sempre, - parece obrigatório -, naqueles momentos duvidosos e de incertezas.
- Acha que as coisas se repetem ou é falta de jeito?
- Sou tola. Não consigo me acertar em abrir embalagens.
Imagina se desse a chegada de alguém que se ama?
- E se viesse a pessoa que gosta?
- Se viesse e me visse daquele jeito, presa.
- Seria muito chato?
- Acho que sim.
- Com certeza não. Qualquer pessoa que a gente gosta pode ajudar.
- Mas quando se quer preparar tudo certinho?
- Não se prende o dedo nas coisas.
- Engraçadinho.
- Ué!
- As empresas de embalagens deviam se responsabilizar pelas nossas gafes, pagar na justiça as nossas vergonhas públicas, ainda mais as mais difíceis como a dos pequenos grupos, porque mais duradouras e trágicas.
- Deviam mesmo. Certo amigo, no puxar de uma tampa derrubou a lasanha verde de uma visita digna. O jantar virou uma sopa de insultos e mal-entendidos. Aquilo a que se propunha do riso e do encontro ficou discussão e desagravo -  justamente esparramado, (o projeto que seria a sobremesa), - foi se despetalando no vento do silêncio. 
- Fala sério.
- Tempo mais tarde, quando o viam num vernissage, eram capazes de sorrir à distância sem lembranças, ficou um ar do estrangeiro no país desconhecido.
Ele perdeu, eles perderam, todos por causa de um assunto técnico de design: embalagens.
Mesmo a pouco se ouviu resmungo na mídia desses assuntos. Foram ventilados sem que ninguém tomasse nota a respeito. Gente que ficou amarrado no treco, que perde a escandinava unha do pé. Até quem derreteu o sorvete e o tomou de canudinho. 
- Vergonha. Ficamos com a humilhação enquanto que os proponentes das idéias absurdas, os facilitadores de problemas, os negociantes, os industriais com o lucro às nossas gratuitas despensas.
Ela se levantou e foi à cozinha. Voltou com um outro pano enrolado nas mãos. Nunca entrou em casa e se apossou. Algo a movia como um direito adquirido, direito de vizinha bonita, maravilhoso com aquela voz de acordei agora. E não era um som gutural, forçado que a moda impinge sobre as criaturas, não.  
- Pois é. Disse.
- E é isso... olhava-me estranha. Balançando o pano, esticando aqui e ali o corpo. Uns trejeitos desengonçados. Isso é charme? Coisa.
Será que falei alguma besteira? Eu não devia ter mostrado o texto. Vai ver que ficou muito feio. O que escrevo faz-lhe mal, são críticas, são necessidades urgentes de dinheiro, são problemas familiares, coisas de consumo, recebimento, nota, compromisso, a pia do banheiro, precisa de um lugar, foi despejada, está escondida aqui porque a amiga está ocupando o quarto, necessita do banheiro, mas se foi à cozinha, por que não? Não sei. Olhava como quem olha o alho que vai ser frito sem piedade.
Então a vejo a esconder as mãos no desamparo. Vejo o furtivo movimento de corpo que deseja ficar e partir ao mesmo tempo. 
- Sabe...
- O quê?
Há incongruências nos lábios, sinais na testa antes velada dos assuntos inocentes. Há em si um não querer ser descoberto.
O meu corpo equilibrado sobre as teclas mexe lento no arame equilibrista das idéias vai deformando pensamento, estrugido retalhos de sonhos, buscando imagens de sono. Aquelas coisas de vai-não-vai.
- Não consigo decidir o que fazer.
- Como assim.
Falta-lhe ética penso. Qual a diferença? Veio a ver-me ou resolver dificuldades? Não interessa, porque veio. Está aqui ao meu lado retorcendo-se. Deseja ir ao banheiro, vá; necessita de livro emprestado, pegue; quer dinheiros, avisa-me. Retorce os lábios, vejo um friozinho estampado na testa.
Que vergonha, que diga de uma vez sem rodeios: o computador, a casa, o carro, a minha alma? Algo acontece com esse contorcionismo todo. 
Tudo é embalagem, a cara de cachorro mimado, cachorro com cara de gente. A diferença é a qualidade do produto interior, que só será conhecido para quem souber abri-lo.
Continuou adiante  a querer tratar das dificuldades, das aberrações criadas e dos acidentes. Da masmorra em que vive, dos flagelos da humanidade. Um tiro que sai pela culatra pode pôr fim à guerra. A toda essa guerra de rodeios, de idas e voltas.
Na hora que a rolha não sai da garrafa, o mestre de cerimônias ri para o vazio. Mas ele quer dizer: Abra a boca que eu te meto à mão.
A roleta do ônibus que encalhou com a senhora e seus pacotes. O magrelo que prende a manga no alfinete e rasga a blusa. A lata de sardinhas cujo conteúdo espargiu-se sobre a toalha nova. O lacre da caixa do eletrodoméstico que arrebentou na cara do comprador. 
Ouvi com paciência tentando desfolhar a margarida: bem-me-quer, mal-me-quer. A força do olhar era como a bigorna a espera do ferro quente e da malha cantante. Estava ali ao lado, perto e distante apoiando-se na insegurança, no desespero do náufrago, na angústia dos que estão à morte.
E se for fome? Quer comer algo, vai ver? E se tudo isso quer dizer: gosto muito de você? De mim? Nem eu gosto de mim. Há de chegar ao final do quadro essa dançarina. Está tensa, olhos enfiados na minha cara, vai dizer algo. Que diga de uma vez. Diga: idiota, presunçoso, desatencioso, não vê que sou uma pobre rapariga? Não vê que temo viver mais um segundo e ser por fim, sei lá, descoberta. 
Aguardei resolução sem me mover. E veio então a primeira flecha: - Ajuda-me!
O que precisar, disse-lhe sem me tornar. E ela entornou: - Estou com problemas!
Era uma voz fugitiva daquelas que não desejariam ficar de qualquer lado do muro. O partido a perdoaria se ao menos confessasse o sangue. Mas não havia mortos ainda.
- O que foi? Perguntei sem mais.
- É difícil ter de explicar. Mas tentarei em sua homenagem, já que veio até aqui.
Eu tinha ido até lá para socorrer, vi o treco destroçado, algo vermelho escorria pelo pano de pratos. Os olhos dela gritavam naquela atitude revolucionária de quem vai pronunciar: Não desisto!
A dignidade das mãos foi devorada pelo mercado, e o consumo do tempo se perdeu, o espaço foi tomado por coisas, cacarecos desenclausurados, soltas as lembranças mórbidas.  
Mas saiu de sua boca um magro: Ajuda-me! O "me" do tipo miado. Estava embaraçada, embalada, embaralhada. Era a lata de tomates europeus que se abre sem abridor.
Sinceramente,  aquilo foi paixão. Em geral, fora as coisas mesquinhas, abrir o lacre de um pensamento é pelo menos pude sentir no direito de repartir. Pensei e aconteceu, depois da macarronada veio a bodas.


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