Entrada






Poderá entrar quando ela não estiver à porta. Entre devagar porque poderá surgir atrás da cortina da sala. Mas venha com calma e não traga outra esperança de nos encontrarmos. Ponha bom perfume, aquele que gosta, assim irremediavelmente disfarçará, e qualquer manifestação será imediata. Teme o desconhecido, o invasor iluminado. Ao abrir o portão faça ranhar as dobradiças, duas, três vezes. Se ela surgir repentinamente, - dará tempo de me despejar bom sentimento. Use algo à cabeça, bem provocativo. Verá que o salto que der em sua direção demorará um pouco mais. O suficiente para que se encerre no mundo externo. Venha com a roupa que desejar, mas use botas. Dessas que seguem a quase joelho. Não deixe de entrar, fale alto e chame o meu nome. Sinal de alarme e batidas de palmas ajudam. Se notar a ausência corra à porta que abro em seguida. Poucos degraus e suficiente. Antes de me abraçar olhe ao redor. Pode causar ciúmes. Pouco se acostuma ao amor estrangeiro. Se me beijar, se me apertar contra ti, faça de olhos abertos. Sente-se à minha direita. É melhor por causa da proteção. Segure a minha mão com força para que pensem sempre em amizade. Trancarei a porta, fecharei a luz, darei uns gritos, usarei o seu nome inteiro. Prepararei para você uma xícara de café e mel batido com melado para que seus lábios brilhem e seus olhos descansem em mim sua alegria. O medo vai embora e o rosto se ilumina. Gosto de tirar do forno uma bandeja de cremontes de cascas de bananas verdes salgadas em azeites,  ovos e farinhas d'água com suspiros. Se chegar depois da badalada da capela, no horário combinado, passará desapercebida. Faz passeios, vai escarafunchar a vida alheia, ver, sei lá, quantos passaram o carreiro do Reitor, aquele bruto. E mais a mais, a portinha dos fundos que dá para o changal de arvoredos bate. Se eu não estiver em casa, disfarce, espere ao sofá pequeno o que está frente à porta. Depois de tudo que já passamos, somente um vizinho antigo entende o que se passa. Ele jamais cumprimenta, bate a cara ao chão com risadinhas gosmentas. Sabe como é. Se quiser deitar, melhor subir para a sala do segundo andar e abrir o sofanete. Depois ficaremos juntos com a calma que não nos separa. Disse que vinha ontem, aguardei desesperado. Sabe como sou, tremo, vara verde. Espero terminar a existência, a perseguição ao jardineiro ao carteiro. Precisamos de segurança para viver melhor. E você surge, aparece assim e de um modo jamais imaginado. Foi naquele mercado que dizem ser um espaço para compras, estava na vitrina e sem preço. Não há preço na beleza. Os gestos, o modo, a curiosidade entrava em suas mãos que tocavam os artifícios, o jogo dos gostos a provocar vontades, desejos. O seu rosto, o riso, o despojar das coisas com a delicadeza da despedida amorosa e sincera. Lembro do lenço de uma seda desenhada em detalhes mínimos de pontos encarnados em um volume de cores. Jamais pude dizer adeus, o seu caminhar nostálgico de um passado longínquo como a deter-se em meio ao jardim de rosas. Os passos equilibrados de quem sabe aonde vai um coração ardente de pétalas. Eu a vi, e isso me pôs em meio ao deserto, vi a passagem do vento, o vestido com tantas amarras. Estendi meu lenço como que pudesse estender a tarrafa no horizonte, a passarela por onde seguia. Escuta, presta atenção no que digo. Se ela vir até o portão, peço que não se mova, aguarde que desfaça a cara ríspida, e a cumprimente com vagar. Se ela ousar subir as escadas é porque a porta está aberta e que logo venho, senão, dê uns passos atrás e pergunte de mim. Responderei no fundo de ti, a vibrar todo o meu ser que vive em sua memória. Sei que é difícil, mas é só um momento, isso passa, desaparece. Vamos nos sentar à mesa, as cadeiras são arredondadas, possuem distanciamento. Tocarei o seu pé, e sentirá que estou próximo, contigo. Recebi seu recado, o que deixou no lance do portão, na caixa de correspondências. Sabia que era seu, vi parte do papel perfumado que me levou a ver o correio, receber notícias. Estava escrito, "Tentei". Você me tenta. Mas te falei que devia ser no domingo que estou longe do trabalho esse mês. Aguardei tanto, esperava vê-la um instante. Sentaríamos na sala entorno ao fogão à lenha. O tapete ficaria tomado, escuro e quieto com aquele corpo silencioso. Não teria porque se preocupar, eu mesmo daria um jeito em tudo. Quando o inverno chegar podemos nos deitar no bambual dourado no meio há um pequeno caramanchão de alamandas amarelas que estarão escuras nessa época. Só nós brilharemos junto ao fogo de chão, e iremos contar histórias e passar horas. Domigno. Lavarei as paredes com cânfora e chá de hortelã pimenta. Venha. Ela gosta de se debruar com a vizinhança, acertar os assuntos da vida pequena, percorrer os recantos junto ao lago. Somente quando me chama é perigoso. Mas aos domingos, não sei, me esquece. Eu te aguardo. Espero muito que venha. Estarei cansado, mas pronto. O tempo desce a rua da vida feito um condenado. É uma companheira, nada demais. Faz anos juntos. De fato, exigente e muitas vezes me acossa como a me mandar em um instinto terrível, mas dou conta. Sou um cara de raça. Você batendo a sineta, sentada na leitora, descansando a cabeça na almofadinha bordada com sinetas, uns guizos de festas antigas. Sabe, eu me deitarei no chão, me recostarei em seus joelhos enquanto lê poemas no fim de tarde. Tomaremos chimarrão, o que acha? Somos assim, todos animais na vida, morremos à toa e a qualquer momento. Pense. Sinto a sua falta o tempo todo. Não se resigne, imponha a sua força. Te amo. E mais a mais, passaremos a vida inteira juntos, eu, você e essa cadela doce e violenta que me acompanha.

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Bessie
in memoriam




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