Meus Sentimentos


Meus Sentimentos
Pedro Moreira Nt

 Antes do enterro apareceu uma quieta de olhos esfregados. Sentou-se distante. A esposa a encarava.
    Os filhos repararam nos cabelos encaracolados na testa.
    - É alguém conhecido?
    - Não é alguém distante.
    Perguntaram cochichando, mãos em concha.
    Ela respondeu: a mãe de vocês.
    As crianças, assim a chamavam, não entenderam o que a mãe dizia.
Eu não pude ter filhos. O seu pai cuidava dessa rata. Peguei vocês todos para que tivessem pai e mãe.
    Antes de partir ele foi visitá-la, ele levou o meu relógio com estrelas de diamante para esse bicho. Morreu, vocês sabem. Morreu porque andou se esquivando de uma dívida de morte. O marido dela o matou, eu sei.
    Eram uma menina e três meninos já crescidos, com os doze. Eles viviam apinhados no colo da Gemina Rafaela, a mãe postiça.
Ela os ensinou a não ter comoção. Quando souberam da morte do pai estavam no terreno baldio fazendo fogueira e soltando bombinhas com uma turma. Foram até em casa, abraçaram Gemina e voltaram para os jogos.
    O mecânico do jeep, abriu o cursor do freio e soltou o cavalinho que sustentava a mola da lona. Quando ele desembestava para casa, desceu a ladeira e caiu na erosão que arrastava a rua, o rio e os chorões. O jeep caiu sobre o corpo estatelado e esmagou as vértebras, a cabeça, e moeu em pedacinhos todo o conjunto da bacia.
    Ele a visitava no final de tarde enquanto o mecânico entrava na venda perto da antiga estação ferroviária. Nem os cargueiros passavam mais porque o viaduto estava rachado. Os dormentes bons foram tirados por uma empresa de concessão terceirizada, essa mesma vendia lenha picotada para as infinitas mansões que se estendiam no horizonte perto do mar. Todas as tardes a fumaça subia elegante  das lareiras como um trem de passagem.
    As antigas pilastras da seção de passageiros foi invadida por um antigo grupo de traficantes que resolveu demonstrar para os locais a importância do empreendedorismo. Pagavam altas taxas para o comissariado não investigar, para não demorar na manobra dos vagões de dinheiro que levavam para uma cidade vizinha. Pretendiam torna-la particular, como uma sesmaria.
    As crianças não iam mais à escola porque era pecado aprender inutilidades.
    Um grupo importante da capital conseguiu trazer até próximo a Rei do Norte, a cidade, imensa quantidade de caliças de construções financiadas a maus pagadores. Foram perdoados, mas as construções demolidas e removidas. Era uma montanha de sujeiras.
    Nascia ali lírios, carrapichos, o lugar mais procurado para piquenique, onde se via nos inícios das manhãs fumarentas e, também nas tardes úmidas os donos das mansões passearem de robe. Subiam as montanhas de caliças, o despejo dos devedores. No cume de uma delas, daquela altura magna, gigantesca e devastada se podia divisar as casas imensas e o horizonte marrom. Via-se o jorro incessante das ondas com um som terrível como se despertasse um monstro que a qualquer momento viria do mar. 
    E era doce. As casas tinham a compleição de bolos de aniversário, bolos de casamento, de um grupo de bunker. Era estranho que nenhuma delas possuísse um jardim com pragas. Eram limpos. Um tapete de plástico tratado no veneno que custavam uma verdadeira fortuna.
    Não aparecia, ficava debaixo da terra. Não deixava surgir uma única folha verde.
    E de modo geral, casas irmãs, primas, parentes. As mais iluminadas, usavam grossos carpetes que imitavam pedras, gramados, e tinham flores feitas à mão, perfeitas. Ninguém poderia duvidar que não fossem naturais. E à sua maneira, possuíam flores tratadas, algumas com gotas de orvalho de resina. 
    O modo simpático de trazer a alegria natural para dentro dos muros,  mostravam a riqueza e a beleza do lugar. Havia também magníficos nichos ornamentados por estátuas copiadas em cimento, materiais plásticos e até de arame. 
    Todas tinham a deusa que namorou Apolo, apenas uma fazia elevar sobre um imenso pedestal com o Rei Davi em uma nudez diminuta e escancarada. Eles moravam ali. Os diferentes.
     Não há razão clara, mas toda vez que o pai saia para namorar a mulher do mecânico, a mãe emprestada entrava no quarto e só saía depois que ele voltasse, e o atendia com candura, apenas depois que limpasse os pés na soleira e cumprimentasse os filhos, um por vez. O ritual da magia afetiva.
    Mas a intenção era outra, provocar. O serviço estava feito, nada a reclamar. Aquilo devia parecer um castigo, um homem daquele a cumprimentar as crianças. Não havia razão para isso.
    - Não foi acidente?
    - Foi.
    O mecânico apareceu em um domingo, um dia não combinado a cobrar uma dívida do carro. E não havia dívida. O pai sempre pagava um tanto a mais. Uma ajuda por ser lisonjeiro. Entendia que as exigências do mecânico acompanhavam a sua bondade em compartir a cama.
    Ela, a mulher desse mecânico, vez e outra batia na porta, trazia tortas, bolos, olhava de canto, beijava as crianças. Dava para cada livros de presente. Para aprenderem, e quando crescerem se tornarem pessoas honestas e valiosas para a sociedade.
    Vários traficantes estavam atrás do mecânico que havia pago a conta com moedas de ouro.
    - Quer nos prejudicar? Não fizemos o melhor para você? Fizemos ou não fizemos? Não pode sair por aí mostrando esses telins de ouro. Está louco ou o quê?
    A mansão maior, menos colorida, mais sóbria tinha um muro pesado, bem mais elevado e com franjas que pareciam à distância, o design de apostila de aramados. O mecânico tinha medo de bater o sino da ponte levadiça, uma novidade na região onde viviam pessoas abastadas. Era bonito levantar e baixar a ponte antes de entrar em casa.
   Ele nunca quis ir à mansão do Rei Davi para não esfregar na cara daquele homem que estava cansado de ganhar a vida desse jeito. Fazia as trocas.
    A casa onde residia também era uma das mansões, mas comum, muro baixo com trepadeiras plastificadas. Ele mostrava sua posição um pouco abaixo da chefia, o caramanchão de flores de tecido pintado servia de oficina mecânica e diferenciava na paisagem.
    Muito conhecida por seus modos, por ser silenciosa e por ter uma inteligência rara, a esposa cumprimentava graciosamente a todos os traficantes igualmente. Jamais se pronunciou que os demais compunham o grupo institucionalizado no local. Eram chamados de benfeitores.
    A esposa os recebia placidamente para as reuniões de negócios. Não se importava com as suas penteadas carrancas. Sabia viver sob pressão. Era como velhas funcionárias de repartições das burocracias que recebiam por fora. Um riso amargo, a cara com duas contas duras. Mãos talhadas para o bom trato, uma dama. As damas eram assim.
    Os filhos fixaram os olhos na mãe postiça. Por fim um dos pequenos perguntou:
    - Devemos chamá-la de mãe, perguntou o mais velho dos rapazes.
    - Sim, claro.
    - Mas você não pode ser morta?
    - Posso.
    Estava tudo ainda sombrio, as velas nos candelabros desenhavam montes , mapas e colares de pérola. Estava demorado.
    O mecânico entrou, sentou-se ao lado da mulher. Um dos traficantes  sentou ao seu lado. Viu-se que se entreolharam e o mecânico passou um pacote. O momento parecia fora de motivo. Jamais se declaravam em público as atividades profissionais que realizavam. Eram muito resguardados.
    O traficante se aproximou da mãe postiça. A face enternecida carregava o peso do pacote. Assinalou um olhar indiviso, empertigou-se como um armário e disse calmamente: Meus sentimentos, entregando-lhe um pacote. Era o aviso. A dívida havia terminado. A cidade poderia receber o perdão.
    O enterro terminou com canto e orações. As crianças corriam entre os túmulos jogando bombinhas para ver se despertavam algum morto.
Gemina Rafaela recebeu o cumprimento de um traficante ainda jovem com poucas feridas no rosto.  Abriram o porta-malas do carro como se fossem médicos que operavam um cérebro. 
    Guardavam ali uns blocos quadrados com trinta, caixas com dinheiro. Ela se despediu com três beijinhos no traficante principal. Entrou no carro, e sem se despedir das crianças, partiu.

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