Palavras a Completar de Mamãe
Palavras a Completar de Mamãe
Mãe não é fácil, igual a minha: ela cria uma lista de compras acompanhadas de frases a respeito de suas vontades, gostos, desejos.
Acontecia durante passeios, momentos de encontros familiares.
Suas pequenas exigências, como que mover o campo e semear, fazer florescer.
Deixava ao acaso, digamos, no assento do carro, no bolso de meu casaco, e, especialmente quando me visitava, como marcador de um livro, na fruteira dando sempre a intensão do acaso.
Resultava que sempre estava provida de tudo quanto necessitava. Com isso íamos mais vezes às livrarias, adorava os sebos, trazia na bolsa um pedaço de qualquer coisa e mimava os gatos e cães que haviam entre pilhas de livros, recostados em um tapete.
Fazia obstinadas trocas, exigia pechinchas. Frequentávamos o teatro. Havia repertórios, dramas, clássicos, comédia, amava.
Claro que vez e outra a um café concerto. Circo jamais perdemos um.
Ópera era difícil, íamos ao aeroporto internacional - conexão Paraguay. Casino, sim. Tomar um bom café em BA, Montevideo, entrar e assistir ópera. Baile, papai era o passe de mágica - um mês antes de voar daqui ele a levou para SP.
Cinema, ouvir músicos de rua, concertinos, música antiga, renascentista e batida de viola, as toadas. Cantávamos em família, e recitais de poesia, leituras. Mamãe ia ao piano e papai cantava. Ele nos deixou antes da hora. Um triste acaso.
E é por isso que envia recados, frases, dicas de acontecimentos, palavras a completar. Era bem isso que fazia com papai, ataviava as horas e o movia, provocava a vida que sempre foi festa e surpresa.
Ninguém sabe como, se quer dizer como ocupava-se com os cuidados, sabia mexer com a tijela quente, movimentar espíritos. Vez e outra recebia amigos, ou os encontrava como por encanto. Desaparecia, e logo surgia com buquê de flores. Estava em um trabalho, logo deixava os afazeres para um bem maior.
Descobri que não somente eu, irmãos, parentes, amigos, e mesmo desconhecidos também completavam as palavras.
Anos de militância, a que chamava imitância sem limites, uma pequena burguesa derretida em ensaios, textos complexos, estudos de travesseiro, romances de perder a fala, economia política, jogos de azar, vida de correria, empregos e trabalhos perdidos em meio a fumaça de cigarros, rugidos de risos amados, canções de viver, era e é ainda assim.
Papai era quieto, uma fortaleza. O silencio dele, o riso amado, um dedo no ar, tudo significava. Daqui a pouco estará batendo pregos, limpando a chaminé, retirando folhas do quintal, da calha ou lendo uma estória em voz alta para ela.
Complete a frase e saberá do que estou tratando, dizia. Todos à sua volta esperavam descobrir.
Vez do leiteiro trazer uma nata batida, o padeiro com doces, o jardineiro com uma muda de jasmim, porque recebiam também aquelas listas, as frases. Sentiam-se incapazes de deixar por menos.
O professor a convidou para conversar com as crianças. Fez isso porque ela deixou algumas reticências em um recado.
Ela conversou, leu para as crianças, e deixou suas frases para serem preenchidas. Ativava os corações, brilhava inteligências.
Até faz pouco recebe correspondência de muita gente, e desses alunos que a ouviram e completaram suas palavras. Deram suas palavras e as cumpriram.
É incrível como que nada exigir, mamãe mobiliza o sentimento mais profundo de reconhecimento, de valores, de responsabilidades. Provoca de tal forma que, quando vemos estamos inteiramente enlaçados.
Pare aqui, dizia. E lá ia com sua caderneta a conversar com alguém estranho. O que será? Não se sabe.
Hoje a levo a um passeio demorado, duas galerias, depois provar queijos e vinhos no JA, buscar a encomenda na Zinna del Acácer, e na confeitaria a sua torta predileta, café, ir no Rosario Negro e levar algum volume.
A loja que sempre comprou durante sua vida, esteve a ponto de cerrar as portas. O senhor Correa havia falecido, e os novos donos vieram. Desejavam vender, fechar o ponto e ganhar no espólio. Não se sabe porque, depois de duas ou três de suas visitas, fico espantado, voltaram com o mesmo negócio, agora está como que estalando de nova.
As pessoas sorrindo, um dos filhos do novo proprietário a convocou para dar uma palestra sobre desenvolvimento e crescimento de valores empresariais, veio busca-la.
Depois, domingo, dia da mamãe, se faz festa no quintal, ou se vai a um trapiche, cadeiras preguiçosas, mesa de sucos e vinho gelado, mantas se correr vento gelado, e panejar com comidinhas quentes, e pesca. Enlouquece de alegria.
Ficamos juntos a ouvi-la contar de suas estórias, a ler, a nos fazer cantar. Sim, a ajeitar as iscas, ajuda-la, e ficamos também a limpar peixes, embala-los e esperar palavras a completar.
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Pedro Moreira Nt