A vida muda com Rei


  Veio cedo, bateu à porta, entrou sem pedido, correu estagnado um ruído de qualquer coisa de ferro. Andou sem medida erguendo os panos, afrontando o ambiente, no fim, achou o que queria. Segurou nos dedos com gosto, medindo peso, passou a entrada balançando as mãos a dizer que não se importava com ninguém, que o mais, era a si mesmo que se interessava, sem se dar conta de ter feito o que fez. No portão, deu um risinho de desdém, como ameaça. Entrou na lata, bateu a guirlanda e se foi.
    O que era aquilo, que coisa se deu sem tempo de uma machadada? Quem diabos veio e me tomou de pronto-atendimento, vazou minha vida com unhas e garfo? Ali no ar do brusco, estava passado, entregue ao desatino. Me senti no papel de SAC virtual, inexistente. Aperte o botão para avaliar isso. Quem era aquilo? 
    Vento entrou, tombou o abajour, abriu a cortina, derrubou o copo de água e desapareceu. A cara de crupe a dizer ''não me ponha no sereno, nem tente; afasta teu sangue''. Parecia, no giro de nada, gente. Arrumei mais tarde. Limpei o aviso de uma presença desconhecida que veio e caiu embora.
    Passei vinagre no ar a fim de desinfetar a respiração. O que foi? Me conta.. Não tenho assunto. Plantei o corpo no canto. Viver é mais um erro, coisa feita à olho. E viver com o amontado de si mesmo, dividir qualquer coisa, meio prato com essas carnes que andam, é o fim da picada.
    Saí do molho, entrei para dentro, revi enganos, amassei todos os meus acertos, joguei fora planos para o amanhã. Tudo será de menos, e pior, será. E não tem osso final que diga o contrário. Amanhã, querer ou não querer, estará lá, e no estado que começa agora.
    Virão aqui, me disseram, a qualquer instante do depois de hoje, depois do agora, virão os cães famintos. Talvez nem latam à porta.  Nada digam, como que nada dizem mesmo, e ainda bem. Cortarão em pedaços os descansos, a vontade de permanecer alheio a tudo.
    Eu os vejo como um acontecimento maligno. O mal em toda a sua imensidade. E entendo que nada posso fazer contra a lava quente de suas presenças. E nem preciso me esconder, me torno invisível ao ser sem motivo. Estar completamente despojado de um centro de gravidade, aéreo, próximo e além. Na imensidão do vazio.
    Entram pelas frinchas igual melecas de pústula que atravessam portais, tomando do sumidouro de qualquer inteligência, a devida posição política, comendo lógica formal, rompendo dúvidas com as certezas de parágrafos, faz muito, destacados, infusos no mais si-mesmo e bastante, possa jamais outra vez ser entendido, e menos explicado. Vão plantar coquinho.
    Porei portões com feixes de fechaduras, tetra-chaves, portas com ferrolhos de aço, alarma de presenças - mesmo para as mais duvidosas inteirezas -, e me trancafiarei com garantias de não ter soltura alguma. Serei distante e ao lado.
Morte, vã e estúpida finalidade sem fim necessário, estado alfa da putrefação, melhor que uma fala, a menor voz aguda de um gosto externo, de um dedo que aponta. Olha, aqui vive esse outro. Se pudesse ter um pó de sais, do tipo banho, que borbulha quando jogado em qualquer pessoa, e produzisse esquecimento.
    Um spray contra reconhecimento, ou que infundisse em todos o prazer de se alhear da dívida social de qualquer expressão em ondas. Olá. Direi, morra pesadelo. Serei feliz por algum momento. Sentar ao batente da porta e beijar a inocência canina.
    Abrir o mesmo livro outra vez. E que ninguém note, não perceba o título que me acompanha, a serena gritaria ante alguém que me sussurra pensamentos. Estaria confidente a uma oração. Pediria paz à guerreira humanidade. Sairia por todas as vielas com um sugador, destes de posto de gasolina, a engolir em um saco o sangue de tantas vitórias. Chouriço disso tudo. Venderia carne humana em papa cozido, isso sim seria a verdadeira face da autofagia. Comeriam o coagulado vermelho, porém temperado, cozido. Novidade, nova especiaria.
    Que gosto esse desejo possui? Teria de me embrenhar nos campos de Ares para me apaziguar, para limpar a carniça das carcaças em tudo espalhadas, em tudo que o vírus prometeu levar mansamente, fingindo não ter culpa, nem no velório e nem no laboratório.
É assim ridículo, uma bomba explode em um trem no Japão para assombrar, tremer os eleitores, que o pavor é a garantia de manter os estúpidos no poder. Não poderia fazer isso, me cansaria passear entre os nadas, entre a quantidade absurda de coisa alguma, de nivelamento educativo, raso e sem fundo.
    Pobre materialidade da fome eterna de saber algum. Lasquem-se, não serei esse a erguer uma ideologia sobre a papa da carne moída nesse açougue a que chamam humanidade. Rica miserável forma repetida, lustrada e guardada no orgulho sombreiro de ter. Vagões de desperdício, nem uma única página poderei girar enquanto a insensatez me come aos calcanhares.
    Veio com o resto de ar possível que um leão marinho necessita para submergir. Apareceu de guarda-pó. Podia estar ali a sigla EP. Hoje proibida, um tanto pior que ontem. Veio assim, descambou para dentro da sala, foi revirando a carne calma das almofadas, ligeiro e teimoso, insistente. Grampeou os olhos em algo como o Furno faz, o perdigueiro. Meio de revestrés me viu de canto, atacou, juntou aquilo na bruaca do guarda-pó atravessando o jardim frontal, indo diretamente ao ponto culminante de entrada e saída, o portal de nossa casa.
    Mais um pouco, se houvesse domínio, marcava um gol, marcou na verdade, atravessou as traves da porta daquela perua, entrou, ligou, acelerou com os braços jogados fora. E foi feita gelatina adensada que treme apenas nos buracos da rua.
    Ficarei até mais tarde sem dizer o que prenso, aperto o caos esticado, o que amarro entre esses filamentos de raios reluzentes que morrem. Nenhuma sinapse. Vácuo elétrico depois da tempestade. Estarei aqui sentado, nesse sofá que foi tocado por um louco estranho que entrou, pegou alguma coisa jamais vista e se foi.
    Aquele homem seco, sem água. Caçador da coisa, vencedor por ter encontrado a coisa. E partiu sem palavra assim como entrou. Como sou lento. Não pude nem esticar o pé para uma rasteira frente ao truculento. Nem haveria como governar suas escamas, arrancar as vísceras, chamar o cão para que soltasse a perdiz.
    A minha fragilidade irritada o mataria facilmente. Feio pé-de-vento, ergueu tudo o que queria, pegou o treco e partiu do mesmo jeito, no uivo de sua suficiência. Era um técnico recém formado, ou um gladiador furioso em fuga. Não sei, vejo à volta e noto quanto que nada de mundo grego possui essa vida romana, o cadafalso diário em que se é levado por essa renovada idade média. Lugar onde o fascismo tem o perfume verde dos jardins recém adubados pela bosta viva da animália do conhecimento.
    São todos como trocadores de etiqueta de preços em supermercados, apertando botões de suas mais-valias sociais. Ridícula escada da pirâmide relacional. Não se fala a língua, grunhe-se na tapa.
    E permaneço nessa raiva inglória de ter o lar invadido. Desconhecido? Conhecido? Qual a diferença? Qual nada, se dá no mesmo e a esmo as mesmas instâncias da canalha solta. Eu me obrigo a buscar algum contentamento, qualquer um que não tenha qualquer alegria pronta, a que se faz cretina nem a que está às escondidas bajulando o cachorro, beijando flores de espinho, de gentileza sórdida. 
    Uma felicidade jamais prometida, esse meu desejo. Me atenho à querer entender o que se passou não faz muito. Fui pescar no rio proibido, não posso dizer para mim o nome. A água barrenta, turva de cheiro de argila. O que fiz? Voltei para esse encanto, sai do desencanto da pescaria, que é o motivo de toda pescaria. Se desencantar. Lugar de fincar os barulhos internos para dentro da lama.
    Era cedo demais, mal se via o outro lado do barranco devido a espuma do ar, um frio lento que cortava os sentimentos. Acendi o fogo, acalmei a vala onde iria jogar aqueles flutuantes feitos à mão. Seria isso, invadiram minha casa porque me dei de rogado em fazer algo por mim mesmo, sem lacre de preço de supermercados? Bobagens vêm à tona. Me ative à beira de todas as passagens. Lancei de sandol, e aguardei.
    Com a varinha de bambu leve fui buscar na meia água e com isca de fígado com farinha de mandioca alguma coisa. Veio uns tambius, depois, mais no centro da corrente peguei saicangas. E por fim, no fim de tarde, encontrei alguns bagres.    Arrumei o que pude, soltei os pequenos, eviscerei na beira, limpei tudo, e resolvi fritar ali mesmo no toucinho.
    Coisa doida, coisa de antigamente, agora se come isopor com anilina. E pus o descanso novamente, lancei. Não tinha nada na linha pesada. Veio algo, puxei de lento para ver se arrebitava, nada. Caminhou na flor da água, deu rabanadas. Foi indo embora, algo de cobra da água, verde subiu do outro lado. Não sei direito. Era o Furno se mexendo atrás de algo. Chegou a hora.
    Logo veio o braco saltitante, andou sobre pedras como pudesse pisar na água sem se afundar. Dei uma geral, limpei aquele focinho para não ficar com cheiro de saudade, pulou dentro do carro e se acomodou de um jeito absurdo. Parecia que estava ali faz tempo. Esse cão tem um gosto de paz, apronta, voa no mato, e logo aparece de orelhinhas, arrasta um pensamento.
    Aviso de retorno. Preparei a volta. Joguei as sementes de erva-doce, manjericão e hortelã fedorenta. Lavei as tralhas e vim. Temperei o que sobrou, guardei no prato alto. andei com um gole de café escuro. Um baque violento veio de frente, alguém atravessou o portão. Tapas feridas na cara da porta, porrada. Fui ver, entrou um fugitivo da civilização. Mexeu tudo, ficou de costas um bruto de nervos tensionados.
    Estava de boca aberta ainda quando achou o que queria, passou por mim como se passasse por um poste e foi pastar fora. Entrou no fubica e se mandou. Vi de longe que o enlatado tinha o nome estrangeiro. O meu carro tem nome estrangeiro, feito no quebra-cabeça, no funil de montagem. A indústria estrangeira vem aqui brincar com nossas crianças parvas, vem machucar suas vidas com essas pecinhas que se encaixam. Passam horas se divertindo e ganham por nada. Levam cada qual para si, um doce. A polícia vestida de rubis lhes infunde cicatrizes toda vez que reclamam, toda vez que não mais querem brincar de montar nada.
    A massa cravou esse chão até se fechar naquilo, e desapareceu na esquina. Vi de relance que o braço de duas onças estava parado fora, dirigia com uma mão. Desapareceu, mas temo sua volta, o meu despreparo para tratar com este desengano. O que foi aquilo, penso ainda.
    Logo entra Margarida com a pequena mimada. A pequena deve ter por volta dos trinta se já não chegou na Extremadura e cuspiu contra o vento. Venta muito lá. E quando se cresce pensa-se que se pode viver sem véu, que a ditadura foi sonho. E que acontecesse agora é má digestão. Ainda acho que se move de gatinhas mostrando a fralda. Mimo, jejo, ganjuda no queixo erguido, tem papinhas. Prova que é irascível. Manda e desmanda na mami com sutil esperteza. Comigo, quando quer nada, quando finge não querer nada, se encosta.
    Numa idade dessas que se xinga a pestilência, o dito retorna na cara. A fala veloz não aguenta o tranco do arado diário. A maquinaria obediente. Ela veio tagarelando com Margarida, estavam felizes, pareceu. Eu as vi desde longe. Foram a algum lugar de compras, desses que o preço bate na telha do dono. Quanto custa? Vendo a tanto. Tanto quanto queira, no erro da calculadora. Dois pacotes de cada lado, conversas e risinhos.
    Algo me sobra. Uma tesoura de corte frio debaixo da balança muda a quantidade. Vou ver, diz minha marcha. E bato os tacos uniformes para ficar sem erro, para dizer que cheguei não tarde da pescaria, que a lama secou, passei o dedo com saliva, que estou ainda arrumado, que gosto de suas presenças.
    Veio um tal, entrou, mexeu, arrumou algo nas mão, passou, desapareceu por esse portão. Não sei quem, um assombro. Estamos onde com isso? Elas se entreolharam, riram quase. É o Reinoldo. Gordo, grande, forte, abrupto, desfeito. Uma ânsia de palavras, mas sem encontrá-las. Sabe, gira, corre, põe a mão em tudo, diz nada, sai? Sim, esse mesmo.
    Margarida, uma flor, não se preocupe. A pequena deitada no ar, desfilava sei lá que pensamento. É assim mesmo hoje em dia. Menino ainda, e vai ser doutor, estuda medicina. Veterinária? Nada de mais, foi certeiro. Não, ele faz corte nas pessoas, vai fazer cirurgia. Vai ver. Onde vive isso? Na capital, claro. Aqui não tem curso de medicina, diz Margarida.
    A mãe dele é aquela senhora que grita, fala no pulo, professora na universidade. Uma que arranha quando quer dizer qualquer coisa, lembra? Lembrei, no restaurante do Almir Levy. Veio à nossa mesa, contou quanto ganha, que é feliz depois que o amante partiu.
    O filho, aquele brusco, estava no bar, chegava logo. A mãe ensinou uns truques a respeito de leitura dinâmica, isso para nos ajudar a ler o óbvio menu do Almir. Sem que houvesse um erro de fala, bateu na mão de Carolina. Na hora veio. Pensei na dona Leontéria, ela batia a palavra no machado de uma régua. Certamente não era.
    Quem? A mãe dele, bem formada, sabe tudo. Tá, mas quem é esse aqui, teu conhecido? Margarida interrompe o ar frio: Namorado de sua filha. Eu me calei. Como será que conversam? Talvez na forma de operação. A gente não imagina. Passe o instrumento, o serrote de prata, pinça, sei lá. E se é o início, penso no futuro do presente, o que mais pode ser pior? Podia ter sangue naquela roupa, mosquitos vampiros comendo as orelhas, entrando nos olhos.
    Vai que por isso entrou apalpando tudo, não via nada. Era uma fúria o tal Reinoldo. Quase médico. Quanto à Carol, estou tranquilo. Amo minha filha, especialmente quando conversa comigo sobre o preço das couves. Ela só consegue falar quando carrega coisas, quando sobe escada, e apenas coisas sem pensamentos, um riso tardio na face, algo como perda de sentido.
    Boa menina, devia ser dona de uma empresa de transporte de cargas pesadas, lidar com leões na selva, mergulhadora de profundidades marítimas, trabalhar na fronteira de um desses países armados até os dentes, isso porque se desliga, mal vê, esquece qualquer dia triste. Seriam juntos ladrões de órgãos de imigrantes, viveriam na Espanha cada qual com seu bisturi. 
    A memória vai até a um urso de pelúcia, ou à última fritura que provou. Puxou por mim. A mãe não. Margarida só no nome, cheira a perfume selvagem, se faz de distraída, mas é capaz de lembrar qual era o paletó que usei faz vinte anos quando chegamos a Joinville ou Santo Tomás de Aquino, mal lembro.
    Agora Carolina estuda engenharia de tecnologia, algo assim. Vai para o exterior, talvez more lá em Faro. Por quê Faro? Especialização, ou algo do tipo. Menos caro, eis a razão. Eu sempre desconfiei que devia ter um banco, um amplo que coubesse nós três juntos, e Furno aos pés com a pata dianteira apontando o horizonte.
    Caçaremos o horizonte, aquele muro onde está Deus escondido.
Fiquei muito tranquilo, resolvi ver quanto custa partir. Margarida é mulher de família, mal sente ser invadida por parentes, perde as horas em papo cansado. Passou por mim aquele tipo sem palavras na boca, um vazio lunar se estabeleceu desde sua entrada e desaparecimento. Foi um susto fantasmagórico.
    Tenho de dizer a você mais alguma coisa. Qual? Ele dormiu aqui em casa com a Carolina. Sério? Hoje em dia é assim, o preço do motel subiu, eles não têm  sossego, deixei. Deixou que ficassem aqui? E o que tem? Larga mão de ser quadrado, papai. Nada de quadrado, sei bem quanto sou escaleno nisso.
    Faça o que quiser com sua vida, está além dos trinta ou menos, não importa. Conhece bem os desejos, sabe diferenciar alegria de tristeza, raiva de ódio. Então se arrume. Eu sou apenas pai, não tenho essa dimensão de alegria estendida que sua mãe possui, não tenho. Gosto de certas coisas-mesmas, sabe? Você entende.
    Margarida interrompe. Olha Julho, amanhã o coiso entra aqui e vai ficar. Que coiso? O namorado, o doutor, o filho da professora, esse aí, como é o nome? O Rei. Rei, que Rei? O Reinoldo papai, ele virá morar comigo. Ele virá? Aquele pé-de-vento estará aqui logo mais, um dia desses. E não terei surpresas? Pensei, bom, se é contigo, tudo bem. Conosco que não.
    Veja por outro ângulo, pense. Um médico, pode cuidar de nossa saúde. Imaginei uma serra elétrica me cortando ao meio. Como assim? Fui ao rio proibido, cheguei em casa e fui assaltado por um vento imenso que levou algo e desapareceu. Aliás, o que ele levou? Um radinho de pilha antigo. Assistimos futebol. O quê? Futebol? É isso.
    Ele vem, os incomodados que se retirem. Você deve estar incomodada, tem tanta certeza de tudo, você se retira. Aqui ninguém vem, mal fica o Furno. Aliás, é hora do lanche dele. Corri a ração para o perdigueiro. Voltei, elas estavam com os pés debaixo do caramanchão, sem flores, sem bailarinas.
    Foi um prazer te conhecer, minha filha amada, uma alegria teu nascimento e linda a sua decisão de amar. Não sei se sabe, é necessário decidir, fazer escolhas para amar, seja o que for de gente. E amor é todo dia uma construção que sua faculdade de engenharia técnica, possivelmente não conhece.
    Por enquanto tenho aqui algum bom pressentimento que será feliz com esse vendaval que arranjou. Ótimo, pode seguir sua vida. Já passou da hora. Sem dificuldades pode conseguir um quarto em uma boa pensão e organizar a primeira república novamente.
    Margarida me olhou com olhos de rio caudaloso. Ia se enfurecer. Ia arrancar o meu coração à unha. Ela, feita de família com todo mundo carregando andor, santo e despojos imemoriais iria saltar sobre mim e me moer de pancada. Ficou dura. 
    Vamos entrar. Entramos. A menina estava decepcionada. A mãe lhe deu carro, conta no banco, mesada e números, nisso posso dizer, Margarida era craque. Sentamo-nos à mesa. Servi o café, fritei os peixinhos, aqueci pãezinhos. Elas duas à mesa. Quando volto da cozinha estava lá o Reinoldo de mala e cuia.
    Olha menino, vamos conversar como adultos. Você sabe que aqui vocês não ficam. Não mesmo. Margarida olhou para os pombos como se tivesse piedade de si mesma. O menino sentado, duas saicangas no prato, mordia um pão, sorvia o café. Fiquei estatelado nos meus pensamentos.
    Como vou pôr fora esses dois? Não disse nada. Fosse como fosse. Moisés andou no dedão quarenta anos no sol escaldante para chegar a quase um fim. Eu andei tudo isso e mais um pouco, claro que de chinelas, e subi a montanha para ver o lugar perfeito. É engraçado esses adoradores de imagem. Éramos assim, abraçados no olhar, entrelaçando cílios.
    Ela me olhou com aqueles olhos de poço com caldas novas, aquele vapor que subia das profundezas. Estão se comportando como se imaginassem que nós, eu e Julho devêssemos pensar por vocês. Arranjem um tempo para esclarecer qualquer dúvida. Sabe, tudo não foge do agora, está aí. É como se vê. Passe o pão. E foi a cestinha às suas mãos.
    Estava miudinho, pisando nos cacos de vidro, e Margarida continuou: vão cuidar de suas vidas. O menino disse nada, tipo legal. Carolina deu uma risadinha robótica. A minha língua travou. Eles se levantaram, pegaram coisas, sei lá. Foi com descrença, depois de um soluço tenso, Margarida os acompanhou até a porta. Eu tentei ver o que se passava.
    Carolina voltou à sala de refeições, me deu um beijo. Outro beijo de filha amada. E se foram alegremente. De longe ouvi o barítono dizer: tchau seu Julho, conversamos depois, beijos. Beijos, tchau. Ele até sabia meu nome. Será que fui eu o distraído? A mãe com aquela lonjura apaixonada permaneceu no batente da porta um bom tempo, encostou. O Furno entrou e se enrolou no tapete. Eu já estava quase às lágrimas, uma dor no peito. Arrependido, destroçado. Podem ficar, nós dormimos com o Furno na lavanderia. Tem água corrente, podemos escovar os dentes lá.
    Queria correr até aqueles dois gansos e trazê-los para casa. Podem ficar, fiquem aqui, durmam, montaremos a segunda república, viveremos do miasma social. Margarida me abraçou, me levou até o sofá e me acalentou. Eles estão bem. O Reinoldo tem um apartamento, eles estão se preparando para viver fora do país. Fique bem, fique tranquilo. Estamos nesse barco, quando o mar nos joga de um lado, corremos para o outro lado e equilibramos nossa bagagem afetiva. Está bem.
    Não me lembro mais como tudo aconteceu. Despertei no rio proibido. Um cheiro conhecido de cerveja e peixe frito. Olhei para o lançante do outro lado, havia uns mergulhões numa árvore. Pai, toma aí, não sei se gosta dessa. Veio uma cerveja mais escura que a água, grossa, encorpada como dizem, escura e fria, não gelada. Olhei contra o sol por onde estava o Rei.

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