Sexta-feira de cesta

 






  Deixei na cesta a compra da feira de sexta-feira. Não é um nome. Sexta-feira significa apenas uma mnemotécnica que o poeta inglês deu ao índio para lembrar do dia que conheceu o índio. A técnica vence qualquer afetividade ao outro. Não lembro o nome dele. A poesia acompanhada com uma tábua de horas. Ano, mês, semana, qualquer coisa que a convenção diga dia, até os segundos, tudo isso faz o prático e esperto que ao desconhecido se dá o nome, a referência de um tempo, não de alma. Tornado objeto a que se refere, medida.

        Pensei nisso na feira. Pastel de travesseiro. Tomates, laranja e outras frutas que a invenção atual da feira faz que sejam caras. Não se trata das frutas, das verduras, o vime da cesta enfeitado, do café, mas de uma lembrança histórica do que foi imposta, revestida em barracas a fechar ruas e pasto das praças, gritos de pregões. “Sua, ga-linha!” “Peixe cheiroso, sovaquinho” “Vai acabar! Vai acabar! De chegar” “Quem quer mais me leva pra casa” “Mais gostoso que isso, só dois disso” “Vem que tem, sobra pra ninguém” “É só chegar e me levar boa senhora, senhora boa” “Ao distinto cavalheiro, aqui leva também”. 

        Havia a mímica de lábios, suja, imprópria em que o pregador, o pregoeiro falava no vazio das reticências sem dizer palavra: “Olha aqui, sua... carne temperada”.

Sexta-feira era o dia do produtor rural vir de mala e cuia para o povoado, a vender mantimentos. Com entrepostos, ficou mais fácil. Muitos ainda trazem a terra limpa. 

        Todos os dias da semana e feira. As sextas acontecia as festas, música em tudo, despedidas, ofertas, preços baixos. O dia de trabalho terminava cedo e a feira ia pela noite. Lampião, lanternas, fogueiras, luz elétrica. Gerador de fenemê. Acende os tomates. 

Se punham sobras, xepas no canto atrás. Por isso é quase sempre caro. Mas acabei de trazer a sexta-feira. Os que dormiam na vila, vendiam os restos no sábado, uma outra feira. Hoje é ampla, quase um shopping a feira dos sábados. Vou às sextas, de cesta e sextas-feiras, almoço parte das compras, sento à frente da enfadonha e mudo de canal, pego uma sesta. 

        Na mesma hora que desperto volto a examinar as sextas que são compridas e rápidas de afazeres. Feiras festivas, que não seguem até a noite, há horários, assinaturas, exigência, policia, vigilância, e dedo-duro à paisana, vem a limpeza, a lavação. Me lembra uma festa europeia que assisti, no esquenta do samba, a direção vai à porta e diz em voz carregada: “A festa acabou!” Vai ver, que um portal acontece e se pode ver um teatro. O mundo fica aberto. Temos o que dizer para nós mesmos, para outros não que vai parecer pedantismo, fica aquela incompreensão estática e um descaso de saliva descendo sem motivo.

        Quem lembra da voz da atriz sustentando o mundo, soltando a técnica, brincando com o compreendido, e outras vezes, pouco visto, a tentativa de enfiar na cabeça daquele público o que representação não diz, e o que a interpretação quase no proscênio dá a deixa da dúvida. Ela olha na nossa cara, por cima da orelha, atrás da poltrona onde ficamos estarrecidos com tamanha ousadia. Outras vezes batalha com o corpo, lutando para tirar a fala, um bife enorme, e vai cortando em pedacinhos e nos devorando com significados, a pausa. O instante em que procuramos sentido, o silencio terrível, e se vira repentinamente, as mãos delicadas, uma postura doce, desconhecida, e despeja o pote.

        Saímos cheios de vozes, de corpos, verdades, a cortina balança, eles aparecem entrelaçando as mãos, os segredos retomam. Estão vivos, saudáveis, risonhos, outra gente. Quem os mantém, quem faz que famílias se encontrem nos domingos, e algum raro produtor venha de alguma distancia com um diretor e conte a tantos deles as suas pretensões. E se acredita que isso aconteça. Amanhã estala uma crítica, correm conversas.

 `    Um escrito, em algum lugar, revela essa vontade de levar à cena o que, faz tempo, numa sexta-feira de cesta pesada em aguardei a noite. E ela se encheu de luzes, houve todo o assombro com os encantos. Estava perdido na Ilha com Sexta-feira e Robinson Crusoé, o Daniel Defoe brincando com viagens ao Rio de Janeiro, caminhando em Copacabana, o teatro,  fila na entrada, reconheci o diretor, ele sorriu com a voz rouca. Não sei se notou, era disso que falava, de teatro.

       Depois, roupas na cesta, voltei para tentar esquecer. Não é bom pensar em coisas que não se pode dizer, ofende. Alma cheia, a cesta vazia, sexta-feira começa amanhã. E o silêncio que virá, o horrível silêncio que o óbvio grita, incompreensível. Ouvirei alguma acusação, escárnio, sentirei dor no andar, e terei a feira, o despropósito, o passeio de Carlos Drumond, alguém com um guarda-chuva debaixo do braço, parece batina, diria o Aloízio de Azevedo, se o deixassem dizer. O Santos joga aqui, amanhã à tarde, e ouço "peixinho! Hoje, peixe no Caldeirão! Peixe frito, hoje à noite, aproveite!", eu entendia, eu sabia o que significava, coisa rara. Deu uma raiva, e o time está bem.

        Venho ouvindo as notícias, fecharam uma livraria, tiraram alguns bancos da praça - para não reunir aquela gente feia; falam de sábado. Antes de entrar, a caixa de correios aberta. A carta, tudo a mão. Atrás um nome antigo. A cesta enfeita a mesa, colorida dessa vez. Ingressos para o teatro. Era tudo que desejava ver, ainda bem que é tarde, que a sexta ainda demora acabar. Posso viajar ou posso lavar os legumes, separar as frutas, preparar algo, um arranjo na gamela, ou desacreditar que isso aconteceu.

        No domingo, entrei em casa e vi a cesta cansada sobre a mesa. O Santos passou. Perdi tempo cuidando de tudo, amanhã a vida continua, o teatro estará fechado para limpeza, abrirei o livro, esquecerei o assunto, a semana lotada, a quinta abre temporada. Gosto das tardes de sexta, aquele fim. Todos já fizeram o que tinham de fazer. Comerei pastéis com café açucarado.

Luzes acesas, quase noite. Algo estranho, a sensação que já não estive ali, que se deixou o futuro embrulhado no plástico, naquela hora, a banca de repolhos. Eram cabeças, cabeças repolhudas expostas naquele palco. Sem ingresso, assistia ao espetáculo.

#######  

Charlie 

    


Postagens mais visitadas deste blog

Nada, como estar entre a gente

Clientes amigos

O ridículo em ser maltratado