O Pai

 



  O pai não sabia uma linha. Tinha no paiol aquela livrarada, coisa feia, sentava debaixo da paineira remexendo palavras, depois se erguia e voltava a limpar o terreno, passava a tarde preparando o mundo.

    Tinha um entrevero de papéis ruido. Ele manchava as letras, ia no carvão afundado, arrumava uma craviola no pensamento e tilintava tudo ali. 

    Muita gente não fia no pai porque ele se alembra.     Deixa a cuia dormir na mão, e depois, do jeito que se estaqueava ruminando o passo do tento, ele ia para São Paulo. Chegava lá, amarrava o macho na praça dos arcos. Era e é ainda.

    A Mãe cuspia nas palavras que ele fazia. Era feio o desentender. Quieva. Boca estancada. O Pai desimportava.  

        O Pai se dizia. E nunca foi da direita. Mas jogavam a lata na fala dele. O caso do coração deitar à esquerda. Despanto que nunca surrou empregado e nem via o relógio. Era de só. Carpava o curso e via enxada dormida. Never ele morreu no campo. Terminava o que era para ser feito. Coisa.

    Cheguei e pedi licença por minha presença tão abrupta. Se falava de um tal que havia vivido da ponta do lápis, coisa de crendice. Vim conhecer a mentira. Entrei com cautela, busquei um mocho e me larguei na espera. Vieram todos, gente arrumada, entornaram-se à mesa e uma calmaria de respiração contida e sorrisos.

    O homem foi servindo presuntos, trouxe queijo, chá, café, leite, e toda uma porcelana desceu do armário. Se encostou na entrada e foi afiando um galho seco, raspava a bota polida. A escrita de um desconhecido. Um beriva sem carroceria, alguém que vinha de partida.

Por acaso não possuem algum trabalho dele?

    O Pai capinava ali, o terreno, uma quarta. Ficou só barranco, tem nada dele daquele lado.

E os poemas?

Na verdade...  Ele não tem culpa disso, o pai. Qualquer um erra. O que ficou virou brasa. A gente na invernada fazia a fogueira arrecém que pegava no galope.

Era muita coisa?

Um igual do teu tipo pegou umas coisas do Pai.

Quem?

    Veio da margem, posava uma fatiota ataviada, campeava palavras. A gente sabe que eram penas de jogar no Minuano. Abancou-se e logo se curvou meio sem permisso, mexeu os dentes do armário, escovou os fundos, pediu umas folhas de mal-entendido. Eu não, que não me levam no bico. A Mãe abriu a vontade, e deixou que catucasse nas cadernetas. Levou o que tinha disso aí.

Lembra o nome da pessoa? O pai sabe.

    Meteu as unhas na farropilha, encheu de molho, lambuzou os passos largos e se arreteu embora. Perdi o nome.

Fale um pouco do poeta.

    O Pai se abancava na curva da mesa, perto da grelha, aceitava o mate, isso quando lá. Esticava os papéis. Tinha abandonado a enxada naquele tempo, pegou no cabo do lápis. Riscava por horas, fazia a horta, dava de comer o campo, tolerava a anga no silencio do capim, ia curtindo o couro e passava vadio por horas, mosqueava.

    Dava de trote quando apetecia, tomado de espanto, via que se empenhava no distraído, mongol, e sem causa negaceava algum juramento, e no instante virava o torso, acho até que causava. No mais, cavava algum dote, intentava subir da mente. A ganga do pensar devido, taipa. 

    E o Pai, quando achava o perdido, dava de maroto e arranchava algum me quer. Isso de cedo, uma hora que era menos, antes de abrir a lenha que mesmo enveredava. Lembro, o Pai armava o fogo, e se dispunha. Se eu estivesse de olho andado, bueno, o Pai me coscava de rir e pilava maiz, chuleando da voz aquela habanera de pequeno atentar, e aí, depois, quando me assentava e virava a caneca cheia, me contava de certa feita uma e duas levada de falas de cor de pandorga.

        Eu polia as botas dele de sentimento, e então, o Pai mateava aqui, corria de esfera de ida e volta, antevia algo e se preparava. Mais tarde, assumido mas baixado, corria o campo e voltava de brida, sem hora. A mãe carneava um pollo ou um desses, pedia para as mercas se fazerem de rogada e ajuntar a salsa, até que chegava seguro no arnês do baio.

    Ele atentava me contar o escrito, era cheio noves-fora, eu não queria aquilo, entendia nada. Trouxe uns desenho. Mostrou aquele amontoado de tomos. Eu me fui longe. Insistia, pedia. A mãe que era serena, gritou com ele. Deixa o Egídio em paz. A mãe quando tava braba dizia meu nome.

    Achegou minha ignorancia dos palavrear. Cada um cada um, cada não, sim fica. Sabia que não retinia. E ia querer o que não? Fiquei na cochilha, ergui a pá-virada. Ele carregava as letras, eu dispunha. Virava aquelas portas de papel dos livros, entrava dentro que nem se ouvia o resmungo das galinhas. 

    Eu via que o Pai lanceava um ar de atento, estava visto, pilchado no ar, tirava o arreio, punha no prego o rabo de tatu, aliviava a barrigueira, dispunha o coxim no cavalete, livrava o animal que descente se aprumava para a tenda, enchia o caldeirão, rocinava, passava a cancela e se lançava no galope solto pelo prado. Aí, ele, descansava os braços no quebra-corpo, voltava de aba quebrada para o rancho, avistava a turma, acenava no lenço, espanava o pó e vinha de lento.

    De perto, cumprimentava elas, dava de abraço, ajeitava os cabelo de bondade, batia os pés na fralda de entrada, tocava o batente três vezes, rezava uma falas guimel, e docemente se ungia da tépida, apretava alecrim, e se punha no tablado perto da trempe. Tirava do tonel um talagaço e se comprometia, as falas eram dadas de acordo, e o respeito saia do prato para a boca, e um quieto azeitava a vontade.

    Logo enxaguava tudo, a gente cumpria com ele, a Mãe se ia para a forja, e vinha de chamar. Certo e demorado, se fazia andar de sameque, curvando as horas na invernada que se preparava.

    O Pai, abria uma folhas de razão, afundava a ponta do tirante nas linhas, seguida ia carpindo, fazendo de riscado. Mais isso não sei, da viola que batia despreparado ou punha a paleta num num tau queimado, ou quedava na beira da água, tadicho, trazia umas prendas da vila, dosava a voz no rincão onde apetecia, sempre caldo, ele se havia, sempre assuntava.

 Como foi parar em São Paulo

    O Pai gostava de se meter em entrevero, nunca soltou fogo da garrucha, era de pouco, voz mansa. Jogava bisca no bar com os gringos, dava de balaqueiro, até com aqueles que vieram do Paraná ele encontrava, esses biriva fermentado, no fim dava um laço na dúvida, o galdério lhes dava de relho, e se apartava.

    Era bucha, ele entrava na cana mas não tinha bergamota, aí, se dava que de onde não se conhece punham as cordas e o Pai cantava. As gentes gostava, ele chinelava. Dava um floreio com a esquerda e aprumava o veredito. Até hoje, mal me sinto, ouço o que não mais está. O Pai levava lume na guaiaca, acendia um inteiro e tocava. A guitarra sempre lhe vinha.

    Nesse pago de contramão que foi conhecido mais sereno. Arcava o dalete a duvidava das patranhas, que se vinham arriar um Santelmo, falas dos que foram, o Pai não metia medo com olhos coriscos, entrava na peleia e se dava cantoria. O que estava feio ficava um fandango, e as prendas vinham trás ele, leva aqui, corre querer, essas miçangas.

    A Mãe tinha denodo, confiava, e de certo que ele não foi para o pastoreio, se manteve. Uma china andava de braço, veio até essa soleira com um bacuri. Era feitosa, queria expurgar a Mãe, contou-lhe umas varadas na canga. Deixou de passeio por essas bandas, mas correu vida toda por causa do Pai, essa guapa.

    Ninguém sabe se ele a serviu, trouxe o minguado aqui. A Mãe lhe sovou e fez o tento para ensinar as contas, logo tornou guri.

Mas o Pai era que é assim, o Pai.

    Isso chegou depois que o Pai estava além do Sul, em outros pagos. Nesse ínterim, mesclou o iode com o escuro zaino, asseverou que se precisava ver. Ficou aí par de anos a outra. O professor levou embora com a cria feita. Nem no fim do morro lá onde fica o depois se encontraram notícias.

    No sério, veio um tal ginete azeitado com um tordilho marchador da terra alta, ele viu o Pai, contou com ele. Vinha bater argola no rincão do semeador, e se enturmou com aquele fino. Um varapau descendente daquele rincão, mas, pôr de lado, tinha senso, pedia as letras do Pai.

As letras dele.

    Havia pegado no fone e falado com lá adiante. O Pai espraiou as verdades, disse que se ia sem meia volta, mas que não faltaria moeda no bocó. Ia encher a guaiaca de metal e voltava depois. Foi disso, um tal de Vicenzo, metido a xirú que o levou, levou o Pai de nós.

Nunca mais voltou?

    Ele vinha logo, mais tarde chegava de paletó. Trazia fazendas para as merca, uma bota que veio que levei, laços de fita e um malote de querencia para a mãe. Enquanto permanecia, um dois, até mais meses corria de igual, e não se largavam. Veio com um disco na vitrola, e ouvimos todos de-volta na prancha. Reconheceu da guapa o pequeno que já se atinha.

E quando regressou?

    Era feio ouvir o Pai distante, então me apunhei e fui buscar, fui de trem que havia, hoje não que a cal ganhou lugar com a soja e a gente segue a pé. Mas fui até aquelas lamparinas porque tinha no toco o lugar onde o teria.

Achou? 

    Tava amarrado no lenço vermelho. Enchido de  simesmo com polaina. Ele me afinou de voz guasca quando me pensou ali. Deu um sacolejo, e sem virar para trás veio. Sem medo, sem dó, reconhecido da minha façanha. Passou o tempo aqui, enviava do correio, quando havia, os riscos que fazia. Continuou lá estando onde estamos.

Como se deu isso?

    A terra foi agregada, agora até o lago bate na borda do campo novo, a cavalhada se some no pampa. Tchó, de aqui por lá é tudo pertença na enxada do lápis, e pode? Foi feito o galpão onde correu e corre fandangueiras.

    Nem se aponta o fim que tudo vem de começo. o Pai foi conhecido de bem, só na letra. A mãe ladeado dele, que não se largam. Estão de conjunto, posto na terra perto do cercado. A gente ainda cuida.

    O camponês me levou um saco cheio de palavras do pai que encontramos no forro. Deixei levar. A Mãe dizia que quem se importasse com letra não conhecia o cabo da enxada. A gente joga fora ou ajuda fazer o fogo.

    Aqui em casa não entra livro, aqui não. Ninguém engana a gente. O Pai, tive despeito dele. Se via com os olhos na lamparina. A pestana fumegada, o cansado que subia na pele dele, a tontura do sol e o arrasto do minuano. E deitava no rio da correnteza até no frio mal quer.

    O moço com o braço enterrado na soleira era como uma cerca que proibia passagem, demorou pouco, abriu o horizonte, e voltei. Para dizer o quê? Tem gente que acredita em fantasma.

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Charlie em duas versões


  

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