A QUEIMA

 



Pedro Moreira Nt

    Um estranho cheiro se eleva na manhã calorenta de domingo. O velho e bom doutor se referia ao mau-cheiro. 'É uma vingança contra o tubo neural, o intestino', dizia alegremente Roberto Raposo, médico de família. As ondulações de fumaça que surgem do mais novo crematório de animais. Inaugurado no sábado recebia, dessa vez, ao invés de retalhos grossos de carne sacrificada, nada mais que papel higiênico temperado com fezes.
        Veio visitar papai antes de sua partida para o sítio. Uma espécie de prevenção que a amizade obrigava. 'É melhor ir mesmo porque esse cheiro pode provocar náuseas', dizia com o estetoscópio apertado ao peito de papai. Não é muito simples que um médico se disponha visitar um paciente que pouco cumpre as exigências médicas. A semana passada preferiu maçã cozida e beber muito líquido como foi recomendado do que cair de boca em frituras.
        'O cheiro está insuportável, acho bom fechar as janelas e ir conversar com o vizinho', disse Raposo. Ele não imagina o que um homem vingativo é capaz. Não tem idéia da revolta interior de um sujeito triste. Ele ja tratou a depressão, mas continua essa raiva contra céu e terra. 'Podia denunciar esse tipo de coisa!' Exclamava com o nariz apertado. A inauguração foi boa, o cheiro do bicho se movendo no espeto, a gordura densa manchando o céu. Era até bonito, podia dizer, lembrava a confirmação de um novo pontífice, a fumaça escura, mais densa e pesada, suja de amarelo da lenha, depois um cinza triste e, por fim aquela coisa escura e constante.
        É uma churrasqueira imensa, aladrilhada de branco e fuligem, integrada a uma sala de estar e uma copa com banheiros. Nunca vi de perto, nunca entrei lá, mas sei disso devido à forma do complexo. 'Chama a polícia, manda quebrar tudo', dizia Raposo, o médico de papai, indignado.
        Queimar fezes, ou melhor, eliminar os resquícios de uma vida mal alimentada tem algo de psicológico. Como que esconder o crime. 'Você comer essas coisas; é um ato criminoso', dizia ao papai toda vez que o visitava e passava um tempo à mesa sem provar nada. Aquela gordura despojada, fria, os híbridos de um lado, os transgênicos reunidos, os agrotóxicos ajuntados no prato causava ao médico um certo descontentamento. 'Assim não dá', e olhava chateado para a cara desiludida de papai com um naco de raiz rosa na boca.
        A sobremesa, algo que nunca faltou aqui em casa fazia o bom Raposo ter um acesso: 'Isso é emoliente químico, açúcar invertido, sei lá, parece ácido processado com corante industrial, está louco?' De fato papai não estava batendo bem da cabeça. Ele comia amido e cola com flavorizante, mas nada o tirava do triste hábito. Culpa, claro, de Aninha Ribeiro Gonçalves, a diarista. Ela conhecia tudo. As novidades que eram lançadas na TV, o último merchandising da telenovela.
        Raposo conhecia a carinha de desfeita de Aninha Ribeiro Gonçalves toda vez que aparecia e a surpreendia com uma massa gelationosa de anelina e sulfato. 'Não coma isso e não dê isso a ele!', ela dava aquela risadinha com covinhas sem mostrar os dentes. A máscara da mentira. Sabia que estava perdido que a sua exigência não dava em nada. 'Por favor, isso vai destruir toda a dieta que preparei!' Exclamava contra aquela amorosa senhora que fazia de tudo para que papai ficasse feliz.
        Comer arsênico não era o fim do mundo, ou era o início de outro mundo, de fim da vida na carne para a espiritual tão desejada. O fedor de fezes queimada aumentava. 'Esse homem deve ter um estoque em casa!' Dizia o médico com a cara enojada. 'Qual a vantagem disso?' Talvez, uma tentativa de se expor ao próprio gosto, de enganar o corpo sem banho com o cheiro que pousava e se fixava no ambiente. 'Parece que não comem legumes de espécie alguma', dizia doutor Raposo passando a mão nos móveis e levando ao nariz.
        'Estão doentes, morrem, deixa eu ver', e repassava os dedos no nariz, 'não passam de um mês', dizia com certo sentimento de alívio, 'eles não são meus pacientes!', exclamava com raiva. Rápida demora, a gente chega primeiro para esperar.
Papai se preparava para o seu passeio no sítio e pensava nas fezes. 'Ele torce para um time adversário ao seu', concluia Raposo. 'Vingança, vingança que volta sobre si mesmo e, mais, confessa, e, mais, sofre as consquencias por maus hábitos alimentares', dizia o médico demonstrando revolta contra a queima de papel higiênico, 'e é um absurdo!', completava.
        Parecia ação democrática, que compartilhava o feio, o grotesco. A busca das raízes animais do homem, de demonstrar a cultura da ignorância pura, de ser por fim, não mais civilizado e obediente às leis contra a poluição para distribuir, - como bem faz a administração dos entulhos urbanos que se amontoam na periferia da cidade -, a manter e acumular o tesouro de todos os restos fétidos da população. 'Ele quer ser orgânico', dizia o médico, 'mas está errado, não é assim!'.
Incineração de antigos prazeres, da memória carimbada no papel higiênico, do pensamento pastoso e sujo, de eliminar de qualquer forma o passado. 'E somos obrigados a conhecer no cheiro a sua podridão'.
        Calmo, meu velho abraçou o médico dizendo que era muito estúpido para uma dieta saudável, mas que agradecia. Entra no carro elétrico, senta-se ao volante. 'Ele vai só?'
        Respondi que não, que passaria na casa de Aninha para ajudá-lo na alimentação. 'Ela vai matá-lo', tentava o médico dissuadir papai, o seu paciente e amigo. No fundo ele sabia que nada poderia vencer a estupidez.
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