Cavalo de Tróia para fervorosos

 

Nem está na Ilíada, na grande. Mas se fala tanto. Imagino todo aquele armado grupo entrando na barriga ridícula de um cavalo de madeira, batendo um nos outros os escudos, as lanças as espadas, e pedem entre si para que não façam barulho, calem a boca enquanto uma multidão de aventureiros e escravos empurram aquele troço, girando o movimento em um tempo feito a gritos, enquanto Tróia dispõe nos muros os bonecos de cera, a massa infantil e curiosa que assiste a marcha daquele monstro. Ficam de cara assustada acompanhando os pesados exercícios da força unida em suas direções. O mito os paralisa, o imenso peso da crença os esmaga. Está na cara que é um absurdo. Crer também o é, e as amarras da incerteza os prendem na expectativa de que além do cavalo de madeira que cavalga pesadamente existe alguma humanidade.
Não há, fato que não. Madeirame mal-posto, retalhos e sobras ajuntados na pressa de construir aquilo, a estrutura insegura daquilo tudo, as tristes verdades das aparências feitas de moralidades, e toda bondade desperdiçada entre pregos e tachas, e a insistência da armadilha que atrai como um encanto se basta.

 

Algo estrambótico e mal-acabado atravessa a planície, a performance dos movimentos, o teatro sem cabresto, aquela tralha, que podia ser o carro mais veloz dos tempos atuais, a coisa mais interessante para se pendurar na parede, a cadeira de balanço que vibra, uma televisão compacta que vem integrada com uma geladeira, qualquer coisa.

 

O teatro do mal-acabado segue a sua procissão, o ofício se despenca das lonjuras vindo por este monte de nada, a esse vazio de almas estáticas, assombradas. Lesches deve estar rindo dessa palhaçada no fundo desse poço, pulando horizontes, rolando nas pedras de Mitilene, ruindo os pensamentos.
É tão óbvio que um cinema se transforme em uma igreja quando uma delas tenha se transformado em teatro, o que estronda na alma é qualquer fala, qualquer rito, qualquer promessa, a mais vazia, a mais estética, um mito para os famintos se alimentarem e morrerem pela barriga da verdade.

 

A pequena Ilíada mais parece uma piada, grosseira em sua beleza, parece mais um júbilo à perda, ao domínio e à persuasão do que pudesse similar como metáfora. A fábula tem entre palavras os vazios da retidão, os buracos cavados do encanto, de prender no corno de qualquer forma geométrica aqueles que serão destituídos de suas crenças, apartados para sempre da vida.
Um canto de morte esticado por malabarismos de qualidade duvidosa e quantidade errática, um amontoado grotesco de uma época tardia onde os pequenos deuses se matam de forma horrível, distanciando e se ocupando dos mitos, e do antropomorfismo, Homero faz a poesia humana, fruto da terra dos seres vivos.

 

Apartar a vida do homem da vida divina, a fim de dar um descanso às emoções funéreas e proclamar a metáfora como escada de Jacó, que não alcançando um ser de outro planeta pode ao menos se requintar com a tecnologia de um cavalo voador.
Homero faz superar essa cava funda da expressão poética como escada que mais nos leva às distancias do estelar, bem mais longe que o kantismo das-coisas-em-si e o pavor das contradições que nos dão ao chão da vida fragmentada, no acúmulo de tralhas moralizadas a revolta. Parece esse querer mais que cala os soldados troianos que esperam a benesse humana pelas mão humanas do artesanato de um cavalo de madeira, dentro os germes que proliferarão e seguem à terra de ninguém, - desde o mercado até em casa, essa mesma inversão do que nos mata e domina.
Não há como recuperar, trazer de volta o não visto, o pessimismo bem atado das coisas bem arrumadas, em seu lugar à espera de uso que faz Píndaro um poeta da derrocada humana e Lesches o ridículo como referencia da vida social, a vida feita de relações instrumentais, de troca, um negócio em meio a um sistema de persuasão. A vida levada à carriola em que o deus-humano faz o pregão: olha a batata, compre agora, leve o passado para casa e durma com pesadelos.

 

Jogado no tempo até cair na morte, o homem é a coisa suplantada de sua dignidade orgânica, alma morta, carne enleada nas paixões, a vida que perdura na coisa sem-vida. Espera o arbítrio dos deuses, que o levem à distância infinita do trágico agora.
E tão longe, o agora se mantém a quem inesperado o aguarda. Expectativa de que o parafuso que prende as tábuas do cavalo de Tróia suplante a miséria viva e constante do sangue da guerra. O imperio grego e o império da morte parecem os mesmos, o saque, ou o desgaste existencial de uma vida em que a promessa tem como fundamento as correntes que a prendem, a própria carne de Prometeu devorada pela água das grandes alturas a mando do acaso, o próprio Zeus.
Ensinar temperança com o sofrimento, o pensamento divinal no ataque, a crueldade como espelho divino refletido no bicho humano, a ensinar os filhos, aos que estão descrentes o peso das garras da águia obediente, da estupidez animal que possui bons homens e conhece o significado do oportunismo, a comer ao eterno a carne da existencia, o fogo que insiste em renascer, a parte que vibra.
Está próximo o cavalo de madeira, empurrado com tanta dedicação, acham que é uma boa armadilha para pegar os tontos troianos que vivem da fé e do pavor, quanto o nunca-visto pode ser valioso como um cavalo, o mais caro animal, gigante, desfila ante a seus olhos.

 

A estupidez do vulgar necessita de intérpretes, daqueles que pouco conseguem dizer o que pode ser qualquer coisa, desses secundários que mais fazem mímica grosseira de alguma verdade, representam a caricatura. A ignorancia carimbada e assinada no despacho da burocracia entende em pedaços, restos de papéis de contrato o que à frente aparece. O cavalo de madeira carregado a socos, tocos e balanços, vai ser recebido como uma caixinha de surpresa para a alegria da massa sem entendimento.
Quanta fé na repentina bondade de um criminoso que lhe deseja paz, de um louco assassino que o olha docemente, de uma horda de lunáticos armados que vem saquear a sua casa, matar os filhos e levar consigo, talvez, a cadeira de balanço, um ferro de engomar à brasa, um passado quieto, as pequenas jóias, os copos polidos e os trincados, esses violentos vêm, podem deixar a televisão, um velho sofá.
A forma do cogitar, a matemática da radicalidade, isso porque se acredita na bestialidade dos tiranos. Sou o grande Dionísio, diz Téspis . Claro que Sólon só poderia dizer que não. Você é o Téspis. Mas a poesia, ela performática, não tira a máscara e continua sendo Dionísio, escapa das mão violentas para continuar em sua imanência, no perdurar que separa-se do além, do que nos leva além do escrito, da aparência, da totalidade, a transcendência.
Ir à distancia não significa alcançar um fim-definido, mas o caminho. Porém, na Pequena Ilíada de Lesches de Mitilene, a vida deve ser morta pelo comércio da bugiganga que uma cultura acredita e usufrui. O espelhinho oferecido ao indígenas pelos terríveis colonizadores armados.

 

O olho da confirmação, da bondade e apaziguamento, vende o cavalo, vende carro, faz o seu sermão, se levanta docemente no palanque da promessa, no Cáucaso com uma chama acesa, roubada, claro, da arte, da poesia de Apolo para ser esmigalhada, enfiada na boca dos iluminados - iluminados por eles, estes que fazem o show. E sim, como ainda acontece, o cavalo de madeira entra empurrado para dentro de nossa Tróia, e de dentro saem os que vão nos matar.
Abrimos um livro de boa origem editorial, e está na capa aquele troço, e no didático e lá está a coisa, o Trojan que vai alimentar as crenças que a vida é um jogo, um esquema grupal que favorece a poucos - que perduram -, está lá a Pequena Ilíada nos ensinando que viver é uma fantasia, e por ela morremos aos coiceadas das poucas verdades que poderemos ter do outro. E se ensina, e se repete, e se aplicam.

 

Odisseu com o filho de Heitor de cinco anos, subindo ao mais alto monte, e o levando consigo. Ele ergue acima de sua cabeça o pequeno Astianacte e o joga de lá. É isso que aprendemos com a Pequena Ilíada, a funérea razão da vida, a crueldade, a monstruosidade humana que dá grupo, se esconde na barriga da falsidade como um verme que mata. Ataca e destrói aqueles que não adoram os intestinos, o vazio das fezes vivas.
Uma obra importante e necessária para a convivência diárias, e para que os alimente profundamente na rasura estática do conhecimento, como uma matemática de efeitos numéricos que implicam sobre uma quantidade, e apenas sobre a qualificação quantitativa numérica, portanto abstrata. É como um saque à Tróia, se tido como heróico e de valor. Pensar sobre isso, sobre o peso das radicalidades imorais, ao fervor dos interesses mesquinhos, grupais por excelência, como ao dizer de Leibniz é um modo de manipular, de acordo com as regras postas, os símbolos de um sistema formal, aplicado ao que está presente ao nosso entorno, à miserabilidade do pensar.

O gago silencio do respirar, quase estanca, soluça o ar, isso sim, isso porque sabe que ante ao arsênico da vida proibida tem seu grito, a voz encardida que mal espinha na garganta o soletrar das palavras, ante morta em significados e purulenta em sentidos. Aqui, não lá na cachola dos letrados, a linguagem, esse cavalo de Tróia.

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Charlie 


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