Disposição do entendimento

 




  Poderia esperar menos da atenção do outro, algum silêncio como sinal de pausa, o corpo a dizer algo, uma lisa concórdia, o afeto,  aceitar a obstrução, a quase-palavra, o desconcerto, e o abandono da conversa, seria assim, no conjunto relacional mínimo de dois, daqueles que falam e conversam ou que se impõem um ao outro como que fossem, cada um, o ser que busca em todos, o que lhes falta, o que devia sobrar das atividades relacionais, o entendimento. Falar sozinho, dizer o não dito é o mesmo que não se compreender. O outro falta, está ali e ausente.

Como um eco que se repete, alguém retorna com o mesmo, um tanto distorcido, medido em sinônimos, paráfrases, escólios arrastadas de alguma ordem, devolvida com pintura nova. E outras vezes a petrificação, a voz que não sai. Um quieto dizer que é não dito. Um alto som de voz, parece jamais falado porque não há quem ouça, quem entenda. Não se entende, um solipsismo dominante qualifica como ente institucionalizado sobre si mesmo, o bastante em que certo saber prático e de expressão se basta.

A metáfora morre espancada pelas mãos da técnica, da utilidade, da serventia, e fica estancado na face a mímica gritante, a cópia que contradiz o não dito, e o arranque queimado, a pergunta que cai como uma lata que leva um rótulo, a implicação de um conceito, o riste duro dos dedos da voz que apontam, alguma alma ali se debate, implora existir. E se tolera as aparições, acalmar os desígnios das incongruências, reunir fragmentos, montar o quebra-cabeças e devolver com lisura e apaziguamento ao ente armado, escapar da morte, o diálogo empírico, figurativo na forma desconexa, noesis do sentido.

E outra vez, a velha tentativa liquefeita se reforma, sai do cabide, leva algum escudo, escapa dos vôos salivares, vem afastar o mal espírito, e se apresenta como uma repetição suave, sinonímica, palavra por palavra em uma corrente que se enlaça e caminha até chegar ao hemisfério da eterna dúvida, e lá se dilui feita de bicarbonato e vinagre, se espuma, leivas de um ser que nasce.

Outra hora que o tempo enforcou, deixou pendurado na porta de entrada todo o dito e o não dito, carregou no papel para todos que vêm à entrada e retoma os significados do que há de vir. Logo vem o barulho eletrônico da caça, caça-se o engano, algum erro, um defeito na lata que cobre a estrutura, o descoberto de um relevo a mais, arranhão da pintura, o mínimo iniludível.

No espaço sem lugar, no foyer, na ante-sala do nada, o acaso convencionado, a quantidade em unidades despojadas, se fala, o comum espraia, se explana entre os vozerios cadenciados da língua, no distorcido reverberar das vontades, e se fala com o outro. E se diz amenidades, foge-se dos entornos coletivos, dos contornos eletivos das forças memoriais. E dos efetivos atos das certezas absolutas.

O que diz e o que fala quase se estabelece em harmonia, o que pensa se demora, e o estranho disso é que quase se dá a inteireza, a dizer que são dois. Ambos constróem o quatro, o ponto referencial, um si-mesmo falante, um outro condicional, o retorno sobre si mesmo daquele outro que também se manifesta, e ambos em conjunto que ao falar fazem soar um diálogo que se constitui de palavras, gestos, e uma confissão que mais importa, a contradição em que no diálogo se busca não encontrar, mesmo quando esse é o objetivo.

E enfim, remete-se à uma ordem de equivalência, medidas de força em que o rosnar do bicho é substituído por um modelo, um saber cartesiano do qual as premissas válidas podem ser trocadas conforme os sentimentos que imperam ou que se inflamam durante alguma conversação.

Está na relação convencional, no sentido de convenções a busca de equilíbrio, o que em fato não acontece enquanto sabemos, desde Filodemo que as emoções, mesmo as mais destrutivas são a capa substancial em que impera a palavra como flecha, como que nas mãos de Ártemis, e como vertente de uma representatividade em que o outro, este quádruplo, emerge entre discursos.

Teatro de desejo e paixões, uma constante re significação do outro, em um terrível consenso guerreiro que tudo vale. O silêncio, a pausa, a quietude, mansidão de quem fala, ou a forma guerreira, um disparate, o jocos, o cômico embevecido de cruel artimanhas, demonstrações da expressiva crueldade que bem Artaud nos faz ver, nesse duplo, na coisa como que nada e na coisa como que tudo.

O simbólico não como símbolo dado, mas com o mesmo aparente estigma do conteúdo e forma, retomado, reconstruído. Apresentação de armas, que um Sancho Pança ineficaz o faz vivo. São alusões subentendidas que transtornam a lógica aparente, onde e somente nesse espaço cognato relacional os participantes sabem.

A palavra no gesto, na interação de um entendimento que a todo instante se desfaz, mesmo na concórdia, na emotiva validade de um acórdão significativo, e sempre, mesmo de cor variante, a cortina de fundo de um tema, que polivalente se esgarça, se refaz e é arrematado, recosturado como tecido de uma ordem qualificada em que o discurso que Bakhtin faz constituir como uma história mínima, um lócus dialético de superação, de um salto quantitativo na extensividade e qualificado na interpretação, um documental visível e possível de ser revisitado.

O marcador do tempo aperta a campainha com esforço interveniente, e se volta a um caminho traçado, a vida se apazigua, a ironia descansa, o sarcasmo brutal se esconde, a face deletéria dos armamentos empunhados se fazem aramados flexíveis cheios de passagens, e outra vez o passo curto que parece correr com os momentos, desfiá-los um a outro, desafiar o fio de luz que Egeu lança ao barco de Teseu, e ninguém perde o fio do sacrifício de um pai que doa a vida para salvar o filho perdido, o caminho se abre, tantas vezes também se esgarça, e no entanto se recupera ante olhos aflitos. 

A fala, o grunhido estruturado, essa antítese do animal capturado pela cultura, feito nela com a voz construtiva de um sujeito aguardado, e em si mesmo instituído, nela a potência quieta da expressividade, a quieta voz que grita e faz  Epicuro também refletir sobre o estado necessário dos desejos, o gesto que insinua, o sinal que faz entender, que pode ser da conta da vida natural, mas que a cultura implica.

E de outro, da naturalidade de seu esvaziamento, e do quanto necessários aqueles que sejam para o bem, a uma felicidade implantada, o que necessariamente para a regência da carne, da corporeidade, e para a vida. Essa luta inominável de um guardião de um bem, tanto esperado por cada um desses participantes. Os pratos limpos, os talheres das mãos, agora devem comer seus erros e suas mais prementes paixões, em nome de uma ascese, de um encontro meditativo de si em que, certamente está engajado o outro, mesmo que ausente, a um outro do qual se faz como ser da esperança de um bem. 

A cultura que nos reifica, nos põe no mesmo caminho, faz com que permaneçamos humanos, ao menos potencialmente. A filosofia da história, dessa micro história entregada em pequenos poderes de agulhas que denunciam a morte da legitimidade do amor, como Machado de Assis nos diz, nos mostra sobre a certeza absoluta da inocência perdida, enclausurada ou rediviva em suas magníficas contradições nas concreções relacionais.

E o que, esses poderes mínimos e agonizantes são vistos pela abertura analítica estrutural de Mannheim e Foucault, quanto é perseguida ou posto em mira por um panóptico teórico da qual se percebe as formas de poder. A coexistência social parte de um ponto geográfico cultural. As relações e interações humanas em seus microcosmos procuram universalizar um conhecimento, que a troca dialógica de saberes promove. Independente de uma visão estrutural, de uma certa arquitetura histórica que tenha sido desenvolvida no tempo e sedimentada como aspectos idiossincráticos ou manifestos de uma cultura.

Ainda assim, a mobilização nas trocas de posição das relações humanas pretendem em positivismo comtista alcançar um ratio de resultados presente-futuros como distensão dessas mesmas relações.

A medida cartesiana que perpassa todas as teorias, incluindo aquelas que a negam, faz com que um pensamento seja um resultado das diferentes condições de passagem de um estado primário a outro secundado por algo que se apresenta como que cristalizado, comprovado por um ponto de vista, como o desenvolvimento do capitalismo, da relação religiosa como inferente a isso, como em Max Weber, e entre todos os demais em que uma estrutura parece emergir dessa lógica.

Se são as relações humanas capazes de fazer nascer a verdade, implica desde antes de Sócrates, e no Teeteto de Platão que se nomeia um conhecimento através dessa maiêutica ou dos passos peripatéticos em busca de conclusões que a fala, a expressão sempre retomada em questionamentos, perguntas que desejam respostas alcancem um nível de coesão que possibilite alguma assertiva em relação a qualquer problemática vivenciada e experimentada, e da qual, com o exercício teorizante de um conhecimento a ser descoberto, posto fora do interior da caverna das nuances, das incertezas, a claridade do seu nascimento, de sua materialização, a dizer outra vez que o verbo se faz carne, se apresenta.

A presença testemunhal de algo, de uma revelação, constringe em documentações sobre essa materialidade de um saber feito conhecimento. A teoria emergente da filosofia, a concussão material da escrita, da confirmação, como no pensamento pitagórico, a constância da verdade ou do sabido torna-se universalizado no tempo de sua validade, quanto mais redivivo ou posto a ser averiguado. Esse exercício sempre interpretativo, de busca de um outro saber através deste saber apresentado é a chave da hermenêutica, e seu processamento de retomada é um processamento detalhado, exegético, que, no entanto, faz surgir outras vertentes desse mesmo saber.

Como a árvore da vida se abre para novos ramos, aumenta sua copa. E poderia ser robotizada, tratada como técnica, e não como téchne, um hermenêutica tipificada na lei, uma estrutura que se pode mexer, que com menos signos flutuantes fosse apenas um cogito dado, um pensamento inter-escrito, uma forma cabal de um limiar conhecimento anteposto, como um símbolo, um rede conexões definidas para dizer uma particularidade, e não se conheceria o que nos faz unidos e dispersos, e em tudo trágicos, humanos.   

Entende-se portanto, que mesmo em forma de um constructo, a integração comprovadamente delineada por busca da verdade filosófica, as teorias se esbarram entre si criando outras dimensões teóricas. A sucessão histórica em fases definidas, e isso tudo, apenas para a disposição do entendimento. Não teríamos essa fala ajuntada por peças pequenas que a abstração do homem antigo uniu em palavras, nem a linguagem se estivéssemos apenas submetidos ao território natural de nossas certezas.

Sem Marx, sem o balanço dos significados no mar do conhecimento, sem as enolas eidéticas de um ir e vir das incertezas, sem as contradições, de acordo com Isaiah Berlin, não poderíamos conversar hoje, não teríamos a modernidade, e também, não teríamos um mundo tão submetido no dual monismo das facções de poder e da mais valia, transformada em vidas monetárias. Mas é graças a ele que podemos pensar que o caminho monetário não é o percurso de uma vida.

A unidade comum de todos certamente não produziria homogeneidade se pensarmos que o único, o que seja número unitário existe por contradição do entorno desconhecido, indisposto em sua veleidade de ser um. O tecnicismo moralista sabe dizer sim e não, dual, prático e definitivo, entre o sim e o não a humanidade desaparece.

Armados em nossos feudos, presos aos manuais, cartilhas e apostilas que fragmentam a história humana, seríamos apenas animais instruídos, indiferentes como os cosmopolitas, que acreditam na moralidade grupal de interesses, nas facções ideo-gramáticas da vida como jogo, no determinismo tecnológico, no algoritmo nessa lógica duplicada da forma e conteúdo transladada à cópia, à inovação, ao primarismo, ao uso do outro como objeto.

Viveriam a gestalt completa em que toda a ação humana, em uma entropia  antevista, teria ao fim uma figura fundo, uma resposta ou a reorganização do entendimento. O mito da união das diferenças no caldo de um rio que desce, nunca sobe, cai precipitadamente num universo de sentidos sintáticos, léxicos do entendimento. A coisificação lógica em sua função de utilidade, a razão tética, que jamais poderá fazer entender o silêncio de Hamlet.

O que lembramos são falas, signos que nos levam a uma forma, a coisa não existente, manejada como valor, como algo existente, mas está vazio enquanto não se decifra o códice, e talvez nunca a intenção. Internamente dorme um mundo, podemos saber dele, de sua sonoridade, os esquemas traçados e o ajuntamento de possibilidades indivisíveis, sempre presentes como que sonhadas, vivas, e mais descansadas em seu mistério, ainda porque não um sinal que possa trazê-las à luz, quem sabe a física, a matemática possa em outro tempo, mas agora são arranjos, disfarces da realidade que não temos, nem podemos ater.

Uma fala no ar não alcança ouvidos que não a reconhecem, e nem mesmo se vale de existir, o algoritmo não traduz as disputas outras, além da moralidade que o conforma. Não é cético e nem frio ou um simples esquema ou uma memória mantida, uma estrutura formal, carrega consigo os passos vividos de quem o traduz, com ordinária mudança de sentido, vivo na morte, perpassa a linguagem cultural da humanidade e não se estabelece nela, é em si a dualidade memorial de nossa existência sobre a terra.

Diz que esqueço e lembro o esquecido, não ele, mas o que foi, o que não retorna, randomizado em ser a perda da causalidade, um assunto adormecido que se desperta em outro mundo, segue transbordando por vias afora, segue como se fosse um libertador, que no fim, no ato se mantém como qualquer outro, como um lembrar que novamente, ante o ato da fala, se esquece. Por isso, cotidianamente lembramos o esquecido, apenas como lembrança  e não como pertinente fôlego para quem sobe a montanha e esquece os passos ao mesmo tempo que não se permite ver a paisagem. 

Juntos e separados, confiantes em nós mesmos, uma mesmice no solipsismo de um estado de ser que se desmorona na boca de outro, que se torna outrem, distante do acaso existente de quem se pronuncia. Dois que são quatro na possibilidade de cada ser interno que lembra. Assim está certo que Buda ouve o pássaro, e pode pronunciar: era isso tudo que desejava dizer. O encanto do estado de agora, que tanto morre como renasce com nossas lembranças nos faz rir com Mahayana porque o riso não tem palavras, ele conota o que no ato denota, e nos aflige o gesto humano de tantas vozes jamais pronunciadas.

E não se diz não. A palavra que é um abscesso, um ferimento na carne da volição. Se usa outra maneira de diminuir a força do vento, baixar a vela bujarrona, escansão das partes rimadas, prender o verbo  no cordame em nó triplo, medir o leme para o lado menos abrupto, deitar o vinho e contar palavras. O barco pesa, se faz lento, mas se protege a vida.

O outro, que pode ser o diabo para Sartre, só pode sê-lo no momento em que se torna um eu-mesmo demoníaco que se aflige com o outro. Para que o outro seja um demônio, necessitamos ser pior que o mal. Essa moralidade nos leva para outro caminho, o ambiente desejado em que o pensamento requesta como um valor superior de não-palavra, não-linguagem, a proeminência do não dito. Nesse caso, de uma solitária existência única, sem o outro, seríamos a perda de nós mesmos, a ausência, a morte do possível.

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Charlie 


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