E em casa







    E fosse de tarde, dessas ôcas, iria pescar. Levar o cão à corrente do rio, fingir cansaço, café frio, pão guardado, dividir com o bicho minha alegria de viver. Apenas com ele, porque outro algum entenderia. Em casa outra vez e novamente cheio do não dito.

        E voltaria para casa novamente, muito tarde, madrugada, de carona, o carro esquecido ao lado do teatro, deixado na rua do centro, e voltaria ao trabalho a pé, quanto fiz disso, para ter a sorte de encontrá-lo e sair para dar uma volta a fim de perder o esquecimento.

        E cantaria à tarde, massacraria o piano, apitaria as cornetas, riscaria o ar com flautas a machucar ouvidos duros, assim com tomaria banho outra vez na chuva e me deitaria no jardim sem ouvir nada mais que a voz das nuvens. Estou em casa, um silêncio que bate às paredes, ninguém que ouve o que digo houve.

        E faria tudo de novo, com a mesma alegria que tive. Todo o meu bem estar que me roubaram. Em casa, tarde, fome, como um prego, pão com bife, e me deito no sofá frio, e me aqueço.

        E deixaria esquecido toda a lembrança de ter conhecido vidas que persistem e não valem à pena. Mesmo mortas estariam ainda polidas na indigência da estupidez. Corro em seguida, chego em casa, e me deixo na poltrona que foi de pouco uso para me preencher de nadas.

        E de tudo que faço de pior é ter de falar com pessoas sobre aquilo que elas não falam; e o que mais me interessaria é falar com quem desperdiça o tempo em preencher minha ignorancia com algum saber, extemporâneo, anulado ou cancelado a qualquer leitura, mas que me anima, ativa. Volto de luto, a casa fechada, livros na mão, entro pela janela vazia de paisagens.

        E algo que elimine a vida piegas, em vez de comprar uma grelha, poderia comprar um caixão, não muito pesado, e sem alças. Vou pô-lo na sala, e dar uma escovada no ridículo comum, cuspir na vida diária, e deitar nele, experimentar. O futuro que logo vem. A gente deve se preparar. Volto para casa como que estivesse abandonado em algum lugar a minha idade.

        E encontrar desconhecidos para jogá-los na vala. Vê-los se debatendo na incompreensão tão bem solicitada. Comer pastéis com café quente. Voltar para casa, absolutamente cheio de mim.
        E dizer por dizer coisas não ditas, e anotam, marcam em papeladas, procuram um mal de minha inocência, como faz a inquisição que somente a crueldade acredita, e vou navegando no mar do ridículo. Por fim escrevo algo que vale a pena, mas só quando estou em casa.

        E sinto que perdi a hora, corro apavorado por ter esquecido, subo no tapume do ônibus sujo, arruinado e consigo, por milagre entrar pela porta da vida diária e ouvir o que não dizem, as más intenções detrás de sorrisos, e com esforço vou à praça ver águas, e a pedir a algum deus, para que não entenda, para que jamais consiga entender a voz de qualquer tipo de chão imundo.
        E logo em casa, comer polentas tostadas, um pedaço de bucho na chapa, feio, e tomar café.

        E ontem me apareceu aqui, disse que o pão podia ser sovado. O café mais escuro ficaria bem. Aqui em casa é assim, a gente tem amigos que são nossos queridos clientes, e adoram o encontro em família.

        E se chovesse outra vez, iria fora pegaria o Horácio e o colocaria para dormir com o cachorrinho. Muita chuva faz mal, até para os sapos.

        E se eu a deixasse a bater à porta o quanto quisesse, poderia me sentar ao piano e tocar sem metrônomo por uns cinco minutos, e depois sentaríamos à beira do fogão, conversaríamos por horas a respeito da importância de atender à porta. Jamais lhe diria que ensaiei uma canção.

        Morre demônio, diria docemente. Ainda bem que não me lembro de ti, não há motivo de Alzheimer para esquecer o mal, a coisa feia e destemperada, a pele raspada na ferida branca que tem de alfinetes grossos de cravo e espinhas, e o pus doce que escorre.

        Sim, prendi as crianças dos vizinhos em casal corri atrás do chato com um ancinho, e fui pedir satisfação para um pedreiro que ouvia aquelas músicas chatas, sim bati na cara do ladrão e o mandei carpir uma data, e agora isso, agora colocam na minha frente uma coisa que dizem ser uma pessoa para que eu me apresente gratuitamente para essa ignorância falante como que nada, um benefício à riqueza pobre.

        Vão catar coquinho, morro de fome nesse país, mas sobrevivo enquanto for república e puder comer da rua, morro esfarrapado, mas tocar para essa tranqueira, essa coisa que se mexe não seria aceita em um bordel, e frequenta a aliança francesa local. como se estivesse num palácio, grande estupidez da idiotice viva. Deus não é bom, se vê, se fosse bom essa que aponto o dedo não existia.
        E se esqueço da vergonha de existir aqui, saber que meu infortúnio alegra tanta gente, morrer que é o mesmo que viver ao contrário, pode ser de uma feita, o motivo de uma vida feliz. A alegria desgasta as fechaduras, as dobradiças das portas, o bater constante dos ausentes, dos que vivem fora. E se eu os permito permanecerem, é porque, ante o fim, a verdade do bem há de eliminá-los, como que um som atípico dos dias quietos, como uma frechada de ponto a outro, como um tombo que ocorre ante tudo que parece viver.
        O meu horto, o lugar do descanso entre almas miseráveis. Necessário flutuar para não ser ferido outra vez, e mais outra. Subir pelos recantos que jamais imaginaram, conhecer o mais doce desconhecido que, de passagem, desaparece na entrada, deixa um recado vivo, vai por si mesmo.
        E se assim é o bem que fosse da vida, não de resiliência, de conforto, pouco dinheiro, e pouca esperança que mesmo, não se tem, mas do agora, desse lugar fixo do presente que é como um nada preenchido de alegria. E ser nada, meu sonho, passar por baixo e por cima do feio. não-visto, e correr o mundo no mesmo lugar, se partir, mas sempre de partida. E em casa, tudo ocorre. O liquidificador canta, a torneira soa um descompasso, a voz estrangeira na tela, o vento das horas a erguer o passado, o pouco sol que entra com um ruído, a dança da máquina de café, o desencanto da lavadora, tilintar de pratos, e a doce voz adormecida do cão. E quem me ama pedindo algo, exigindo a minha existência. Eu, e em casa, ainda vivo. Nem se crê, mas acontece que volto com Lázaro através do condão do deus a ser liquefeito, estratificado de aparências, descido ao rés do buraco chão. E em casa, abro o catálogo de partida, o melhor lugar de viver.
                                                        #######

Charlie criancinha

 

Postagens mais visitadas deste blog

Nada, como estar entre a gente

Clientes amigos

Na ponte, Maria