Plástico sem assunto

 

Estava frio, Mas era pouco. Na verdade o sol ensolarado, mas aquela sensação de quase fim-de-semana, um dia raso. Recebi o recado. Fomos. Era um nada, conversa de passado. A casa naquela distância; havia tempo, motivo, e mais a mais. A varanda alta, o jardim escondido no meio das flores, ou era isso. Sentamos, limonada por causa de um calor prometido. Rimos, lembramos aquilo que não aconteceu.

- Engenheiro arquiteto, então, não sabia.

- Era engenheiro-arquiteto, depois da lei, a gente é da arte, a gente faz design, repete, reproduz.

- Mas a casa.

- A casa fiz na unha. Escada leve com descanso.

- Corrimão.

- Pedi as medidas por causo da sogra. Idosa.

- Bacana.

- Ela me odeia.

- Mas então.

- Para não cair.

- E te odeia.

- Sou feliz, quero que dure.

Piadas de sogra não vale. A filha do coveiro casou com o morto. A sogra, magra, só ossos. Essas coisas. O banheiro de entrada, chama lavabo. A sala ampla, cabe dois de cauda e umas trinta tubas. Tinha me dito que "ela" não entra sem pôr primeiro as tocas nos pés. Sabe toca de banho, dessas que ninguém tem nem usa, se encontra em hotel? Sei. Abriu o armário. Um estoque de supermercado. Ela visita sempre. Sempre visita. Põe as tocas nos pés. Para não deixar lembranças do crime. O tapete.

Bem, o tapete faz parte da cultura pós-guerra. Não pegar pó e ter de lavar na mão, estragar as mãos de piano. Elas cobrem com esse plástico caro. O desenho aparece. O sofá. Vê o sofá. Recoberto de plástico, por causa das crianças, quando tínhamos crianças. Novinho. E as almofadas também. Só não tem plástico na lareira. Por causa do cheiro que causa. E a vizinha. Bem, ela sai vez e outra. As visitas são bem-vindas. Ponho plástico. Mantenho a originalidade. A vida é triste, sabia? Inventei essa casa, mas não inventei o plástico.

Não saímos da sala. Ela põe as tocas nos pés. A vizinha e coisa e tal. As crianças moram em Alicarnaso, algo assim. Não pode trabalhar em duas profissões. Escolheu arquitetura por causa da reprodução. Estão preparando o café. Hoje é novidade, o café de ontem está na geladeira. A gente. A gente se equilibra, vai levando. Gasto mais tempo no desenho à mão. O cliente gosta. Mas é quase a mesma coisa. Visita, vem de vez em quando. Ela não está. Prefere assim. Tanto melhor. Não escorrega, passa deslizando por tudo. Não senta para não amarrotar a roupa; senta para amarrotar o estofado. Tem plástico. A gente se eleva, se gosta. Não temos assunto, acho que é isso. A engenharia dava trabalho. Tinha de molhar as mãos de uns guapiaras e correr o dedo no fundilho, era chato. Ganha mais, bem mais. Mas, sabe como é, tudo é plástico.

Entra devagar. A sogra está a[i? É surda do olho direito. Finge não ver e não ouvir. Deixa cair moedas e ele pula na garganta. Economia, vida econômica. Vou lá. Oferecem água, comida guardada, cheiro de plástico de geladeira. A geladeira também. Tem comida ali que nem sei a data. Não viajamos, assistimos a programas de turismo. Reclamamos afetivamente: quanto desperdício. Tem uma tela de frente, original, de plástico. As cores mudam um pouco. Não. Já temos dois filhos grandes e donos de Alicarnaso.

Comprei. A garagem é aqui. Vem ver. Vermelho, rebaixado, natural. Feito à mão. Buick. Mudei a embreagem, o freio que era à manivela. Está coberto com plástico por causa do cuspe. Eles cospem da janela deles e mancha tudo. Não sei quê de enxaguador bucal que usam, mancha. A mancha é diferente da de Dom Quixote. Mas eu não sou um cara desses. Quer ouvir? Vou ligar. Trago a chave no bolso. Elas escondem. Acham que é um perigo, um desperdício. Gosto. Não do carro, mas o que ele causa aqui em casa. Estamos sem assunto, sabe como é. Ao menos. Vermelho forte como o barulho que surge. Ronca bem. Comprei para esquecer.

Na saída, ele na frente, pusemos as tocas nos pés.



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