Chove toda partida

 



  Cai o dia molhado. Havia telefonado um par de vezes, veio mostrar o carro. A lata úmida. Brilha o poste. Não quis entrar. Ia preparar um cafezinho. Chovia pouco. Ficamos fora do portão.

  • Tudo bem, querido, vamos entrar.
  • Não posso, vim apenas mostrar.

Carro de uma cor entre vermelho e abacate.

  • Bacana, parabéns.
  • Saí da universidade, agora estou livre para o que der e vier.

Aquilo me chocou, eu não imaginava.

  • Vamos conversar à beira do fogo.
  • Não posso “temos” compromisso.
  • Uma pena. Pensou bem na sua decisão?
  • Cansei de sala, entende. Comprei isso, bala na agulha fio no buraco. Camelo, céu, atravessar o deserto, quarenta anos de marcha. Entendeu a linguística?
  • Acho que sim. Está chovendo, podíamos falar de teus planos, se quiser.
  • Deixa te dar um abraço. Quanta preocupação, bonito, saudades.
  • Chorei na chuva.

         Atravessou o pensamento, estacionou algo entre as orelhas. Está sem chapéu, a água descia lentamente e eu fiquei ali, abismado. De repente, talvez descesse do palco das incertezas, disse-me:

  • Ele me desperta
  • Quem?
  • O carro.
  • Sério?
  • Não estava acostumado, primeiros dias, e fui chamado literalmente: “A corda” João, “the Barbosa just  éspera for you.”
  • Desse jeito?
  • Não estava acostumado, misturou as palavras e língua. Mudei no jeito.
  • Que legal.

 

        Explicou: É um advice conoteado e conectado no sem-fio. Carrega energia sozinho; e daí esse negócio fala, entende, um carro pós-moderno, entro nele e me diz bom dia. Acredita. Dirige sozinho.


  • E os estudos, vai seguir?


         Desconversou, ou estava possuído por um gerador de faíscas de Parmênides, ele segurava o infinito nas mãos, sabia da natureza dual da integração do movimento taxionômico da vontade, “ teria a terra raízes na água,” e eu não me sentia um torrão, a chuva desmoronava a árvore da sabedoria. A lembrar que o mesmo, está a pensar ao tempo mesmo de ser. Saltou sobre mim segurando-me nos ombros, agitado:


  • Às vezes diz coisas, para eu deixar de ser fascista, porteiro de campo de concentração, burro - me chama assim, às vezes -, ando até melhor. Olho pessoas e não tenho mais vontade de cuspir na cara. Terapia pura.
  • Isso não dá para acreditar. Você sempre odiou a coisa humana.
  • Não é bem verdade, tenho esse nó apenas com profissionais da estupidez.


         O carro ia. Milagroso. Todo escárnio idiossincrático da cultura em um só lugar. O teatro. E ele acreditava nas caricaturas povoadas de sem-quê.


         Outro dia poderia beijar a manivela do torrador do café. Tudo se referia ao carro:


  • Falei com ele, quer dizer, recebi uma lição: esqueça tudo, não se preocupe se o sangue das artérias e veias estão mais grossas que pasta de dente, coma escovas. Acredita que comi. Rapaz, melhorei. Sarei do mal de Párkinson, não preciso ficar com copo de uísque e gelo nas mãos para disfarçar.


     Fiquei idiota para sempre, a lata falava sem arranhar a garganta da vaidade, sem se debulhar latinamente em lágrimas da pura falsidade. O carro era canastrão, estava com a certeza debaixo do braço. Desejava abrir o livro de orações e superar a dor de meu silêncio.


  • Converso com ele, sabe, não ando mais só. Os valores humanos em uma caixinha, pode? Isso confirma a nulidade de professores e do estábulo escola que treina o egoísmo e fortalece o cinismo. E essa frase que venho estudando, olha, não é minha não. Isso tem originalidade. Entendeu o “estábulo” é só ver na escrita que tem por aí, trata de um cara que escreveram o nome dele errado, chamam Heráclides quando, todo mundo que tem esse carro sabe, tem meu nome: Hércules. Daí é só compreender a profundidade da metáfora. O carro falava de quem? De mim, entendeu? Foi ele quem lavou na enceradeira, - sem querosene, que faz mal - o tal lugar das vacas, entende o trocadilho: tem de sujar no dejeto para dar leite. Para trocar em miúdos, um tal Augias acabou com a educação, se livrou do problema; o nome de onde vem ceifar a dor de cabeça do Rei, compreendeu? Cefalgia. Aprendo tudo.


        A chuva leitosa, a vida escorregadia. Havia atravessado as divisas da Mesopotâmia, podia esbarrar no fim a qualquer momento. Ouvi, ter o ouvido sem língua, calado como o baque fúnebre, a nudez e o manto miserável da aceitação.


  • Só falta jogar conversa fora, com o carro.
  • A gente bate um papinho, estou investindo na bolsa, ele telefona para os fofoqueiros e me dá o lance.
  • Coitado do carro, mostra, ensina, exemplifica, apazigua e dá dicas de saúde e como ganhar dinheiro. Imagina se pudesse libertá-lo quanto poderia ajudar esse mundo viver melhor.
  • Pensei nisso, holografia materializada por transferência via chip - HMTVC, algo experimental ainda. A coisa encarna, mas tem de “amputar” o cérebro, tomar cerveja “comer” muito refrigerante. Eles succionam através do nariz, um tal Breath.
  • Não é bom?
  • Bom é, mas pense na fala doce do tipo desinfetante pinho, percebe? Pegou?
  • Hércules, estou pensando e não consigo entender. Não mesmo.

        

         Era muito travado naquela época. Mas Hércules explicou do jeito dele. A vida era um bem pouco durável e sem reciclagem no DNA. Prova substancial à minha frente.

         

          Molhado, encardido, esperando a sorte no jogo do bicho, pedindo que o inominável me espancasse para me tirar daquele pesadelo, eu o fomentava e escutava as palavras doces sobre o fim do mundo. Até me ocorreu entender um certo que derrubou a casa, desabrigou a família para construir uma arca. Morrer seria um modo de alcançar a fé perfeita, a inação. Morria de inanição, fome de entendimento em palavras.


  • Seres como este carro que pensam o que o mundo pensou, tombou a história humana nos braços, não podem ser livres.  A gente entende e tal, e pronto. Eles são fiéis, está no DNA do povo-carro. Isso porque é novo, se fosse de segunda mão podia me causar um estrago. Poderia aprender o que não tem sentido, ia perder dinheiro, sei lá, a câmara do portão eletrônico. Essas perdas duras que magoam. Seria como não ver as poltronas da censura, do pessoal da mídia, dos beneficiados, a placa do estacionamento que acompanha a hierarquia da empresa, não ver o nome do dono. Taí, isso estraga. Essa informação pura tem, de um modo melhor, a liberdade da obrigação, do dever, e combina com a cidade atual, inteligente. E mais, como toda sabedoria, descartável.
  • Verdadeiro pensamento de geladeira duplex e pinguim inflável.


         Ele se encostou no carro e ficou cochichando, ria um pouco e falava na filha do retrovisor qualquer coisa. Dava gargalhadas. Não entendia patavina.


  • Desculpa, estava falando em carrês. Olha, mais uma: a gente perde a amizade, mas não perde o amigo. Boa essa, né?
  • E o que tem isso a ver?
  • Significa, você não é mais útil para mim, mas o respeito continua.
  • Olha, impressionante.

Deu-me um aperto de mão polido, político, e pediu para o carro ligar, o troço funcionava.

  • Funciona à elite - sol pequeno com luz auto-centrada individual reprodutiva. 
  • Tive de derrubar meia lágrima: Tchau filho.

         

         Ele sorriu como se tivesse vendo um fantasma. E foi. Foi para sempre.

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