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Pedaço esquecido

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   Ele chega e vê o pano vermelho no canto escuro entre o sofá e aquele abajur de alças com pantalhas amarelecidas que ganhou na primavera passada quando seus parentes, cansados dele, resolveram dar fim à tralha, e assim o acudiram terminantemente para suas leituras ocasionais. O fato de sentar ali para ler - mesmo que mal pudesse manejar o livro -, fazia do recanto algo persecutório, um lugar fundado no desejo, por isso reconhecido antes, percebido antecipadamente. Ele entra com a certeza do lugar, por isso vê o pano entre o sofá e a luz desejada. Claro, ela sabia disso. Tanto que sofria de ciúmes daqueles livros à volta com o abajur e procurava impedi-lo de aproximar-se revolvendo páginas marcadas, redistribuindo a ordem ou o convidando para outra coisa como tomar um suco. Com o copo amarelo de suco às mãos dizia: - Querido, vai ler?  A pergunta tão doce é uma exigência, força de controle para antecipar o desejo tentando vivificar outro interesse, uma vontade escondida. Se ele resp

A QUEIMA

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  Pedro Moreira Nt     Um estranho cheiro se eleva na manhã calorenta de domingo. O velho e bom doutor se referia ao mau-cheiro. 'É uma vingança contra o tubo neural, o intestino', dizia alegremente Roberto Raposo, médico de família. As ondulações de fumaça que surgem do mais novo crematório de animais. Inaugurado no sábado recebia, dessa vez, ao invés de retalhos grossos de carne sacrificada, nada mais que papel higiênico temperado com fezes.         Veio visitar papai antes de sua partida para o sítio. Uma espécie de prevenção que a amizade obrigava. 'É melhor ir mesmo porque esse cheiro pode provocar náuseas', dizia com o estetoscópio apertado ao peito de papai. Não é muito simples que um médico se disponha visitar um paciente que pouco cumpre as exigências médicas. A semana passada preferiu maçã cozida e beber muito líquido como foi recomendado do que cair de boca em frituras.         'O cheiro está insuportável, acho bom fechar as janelas e ir conversar com o v

Cavalo de Tróia para fervorosos

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  Nem está na Ilíada, na grande. Mas se fala tanto. Imagino todo aquele armado grupo entrando na barriga ridícula de um cavalo de madeira, batendo um nos outros os escudos, as lanças as espadas, e pedem entre si para que não façam barulho, calem a boca enquanto uma multidão de aventureiros e escravos empurram aquele troço, girando o movimento em um tempo feito a gritos, enquanto Tróia dispõe nos muros os bonecos de cera, a massa infantil e curiosa que assiste a marcha daquele monstro. Ficam de cara assustada acompanhando os pesados exercícios da força unida em suas direções. O mito os paralisa, o imenso peso da crença os esmaga. Está na cara que é um absurdo. Crer também o é, e as amarras da incerteza os prendem na expectativa de que além do cavalo de madeira que cavalga pesadamente existe alguma humanidade. Não há, fato que não. Madeirame mal-posto, retalhos e sobras ajuntados na pressa de construir aquilo, a estrutura insegura daquilo tudo, as tristes verdades das aparências feitas d

Disposição do entendimento

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    Poderia esperar menos da atenção do outro, algum silêncio como sinal de pausa, o corpo a dizer algo, uma lisa concórdia, o afeto,  aceitar a obstrução, a quase-palavra, o desconcerto, e o abandono da conversa, seria assim, no conjunto relacional mínimo de dois, daqueles que falam e conversam ou que se impõem um ao outro como que fossem, cada um, o ser que busca em todos, o que lhes falta, o que devia sobrar das atividades relacionais, o entendimento. Falar sozinho, dizer o não dito é o mesmo que não se compreender. O outro falta, está ali e ausente. Como um eco que se repete, alguém retorna com o mesmo, um tanto distorcido, medido em sinônimos, paráfrases, escólios arrastadas de alguma ordem, devolvida com pintura nova. E outras vezes a petrificação, a voz que não sai. Um quieto dizer que é não dito. Um alto som de voz, parece jamais falado porque não há quem ouça, quem entenda. Não se entende, um solipsismo dominante qualifica como ente institucionalizado sobre si mesmo, o bastant

Sexta-feira de cesta

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    Deixei na cesta a compra da feira de sexta-feira. Não é um nome. Sexta-feira significa apenas uma mnemotécnica que o poeta inglês deu ao índio para lembrar do dia que conheceu o índio. A técnica vence qualquer afetividade ao outro. Não lembro o nome dele. A poesia acompanhada com uma tábua de horas. Ano, mês, semana, qualquer coisa que a convenção diga dia, até os segundos, tudo isso faz o prático e esperto que ao desconhecido se dá o nome, a referência de um tempo, não de alma. Tornado objeto a que se refere, medida.           Pensei nisso na feira. Pastel de travesseiro. Tomates, laranja e outras frutas que a invenção atual da feira faz que sejam caras. Não se trata das frutas, das verduras, o vime da cesta enfeitado, do café, mas de uma lembrança histórica do que foi imposta, revestida em barracas a fechar ruas e pasto das praças, gritos de pregões. “Sua, ga-linha!” “Peixe cheiroso, sovaquinho” “Vai acabar! Vai acabar! De chegar” “Quem quer mais me leva pra casa” “Mais gostoso

O Pai

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    O pai não sabia uma linha. Tinha no paiol aquela livrarada, coisa feia, sentava debaixo da paineira remexendo palavras, depois se erguia e voltava a limpar o terreno, passava a tarde preparando o mundo.      Tinha um entrevero de papéis ruido. Ele manchava as letras, ia no carvão afundado, arrumava uma craviola no pensamento e tilintava tudo ali.       Muita gente não fia no pai porque ele se alembra.      Deixa a cuia dormir na mão, e depois, do jeito que se estaqueava ruminando o passo do tento, ele ia para São Paulo. Chegava lá, amarrava o macho na praça dos arcos. Era e é ainda.      A Mãe cuspia nas palavras que ele fazia. Era feio o desentender. Quieva. Boca estancada. O Pai desimportava.             O Pai se dizia. E nunca foi da direita. Mas jogavam a lata na fala dele. O caso do coração deitar à esquerda. Despanto que nunca surrou empregado e nem via o relógio. Era de só. Carpava o curso e via enxada dormida. Never ele morreu no campo. Terminava o que era para ser feito. C